Os homens e as máquinas por mais que estejam sendo constantemente comparados são seres totalmente distintos. Alguém duvida disso? Parece que sim. Ao se tratar da labuta diária do homem em busca de sobrevivência ocorrem confusões acerca de sua natureza, por vezes afastando a condição de ser sensível do ser humano. No mundo contemporâneo é bem comum o planejamento diário para cumprimento do máximo de tarefas possíveis, a produtividade sem filtros, e tal bandeira social relega homens e mulheres à subalternidade num processo incessante de alienação e desumanização.
A concepção de desperdício de tempo ganhou holofotes e o objetivo que deve ser prezado sempre é o de alcançar a todo custo mais e mais lucro aproveitando todo o tempo disponível. Não ter tempo livre para usufruir do pouco – ou muito – que se conquista com o próprio trabalho se mostra como uma grande vantagem, um sinal de economia e prodigalidade. Num mundo capitalista, o tempo para lazer vira ostentação, de modo que a legitimidade para ser fruído de verdade parece ser apenas de determinado grupo, o dos legalmente ocupados e bem explorados, embora se trate de um direito social presente na Constituição Cidadã, a de 1988.
Como princípio, o tempo de lazer se configura essencialmente como o exercício da liberdade de escolha, da preferência, do preterimento, sem submissões ou uniformizações, tão comuns noutros momentos da existência do homem.
O ritmo frenético em que se vive hoje transforma corpos humanos em verdadeiras máquinas de trabalho, muitas vezes sem manutenções periódicas tão comuns aos instrumentos e equipamentos fabris, a fim de que a vida útil possa ser garantida ou até mesmo estendida. Diante do esgarçamento progressivo e incessante das capacidades físicas e mentais do cidadão, não é difícil identificar a adoção de comportamentos estranhos à natureza humana já que em nome do trabalho, na busca pela subsistência, assombrado pelo medo do desemprego, ele silencie, limitando-se a realizar o rol de deveres até mesmo no tempo que deveria ser ocupado autonomamente pela ludicidade, distração, contemplação.
A vida, em especial para as camadas mais humildes da população, se encontra ritualizada e determinada pelo sacrifício diário da busca do pão com o “suor do rosto”, sem a perspectiva de um dia solar, livre de amarras, de lazer. Isso decorre da impossibilidade de libertar-se dos freios e contrapesos que agem castrando ou impedindo que a afetação criativa se manifeste diversa e surpreendentemente, tudo em nome da obediência ao padrão de servilidade que lhe é imposto.
Ignora-se que o tempo livre, mais especificamente o reservado ao lazer, exerce importância vital porque, mais do que um período reparador para retorno às ocupações impostas, o lazer é uma oportunidade de o cidadão se despir da farda, da função de colaborador subalterno, afastar-se de ser uma “prosopopeia de equipamento fabril” e se sentir ser pulsante, inteligente, sensível, verdadeiramente humano. Tudo isso porque, como princípio, o tempo de lazer se configura essencialmente como o exercício da liberdade de escolha, da preferência, do preterimento, sem submissões ou uniformizações, tão comuns noutros momentos da existência do homem.
O corpo humano talvez esteja a carregar mais do que nunca o peso das padronizações. O rótulo “trabalhador” ganhou nos últimos anos ares de absoluto privilégio, de modo que o direito ao trabalho, cada vez menos respeitado, se revela com a força de uma “graça”. Aquele que se encontra em tempo distinto parece atentar contra a “bênção” (pura ironia!!) de poder se submeter às ordens do empregador e desfrutar da condição de vender a sua força de trabalho. Assim sendo, o tempo livre e o tempo reservado ao lazer têm o labor como a régua, termômetro e finalidade precípua. E, para tanto, desconhece-se até mesmo a natureza humana, a importância em estimular e desenvolver a ludicidade, o divertimento, a contemplação, o autocuidado e a autorrealização, tudo em nome da massificação da população e padronização de corpos, reificando o trabalho e tolhendo ou regrando o lazer.
O excesso de tarefas a cumprir ou mesmo a culpa ou sentimento de fracasso por não estar ocupado se mostram como recursos do capitalismo desenfreado, eficazes para que as dimensões humanas sejam afastadas. Perde-se de vista a tríade articulada sentimentos, pensamentos e ações como imprescindíveis ao desenvolvimento humano e à responsabilidade social. Deixa-se de acreditar que o desejo de viver e ser feliz funciona como mola propulsora da existência do homem e que este carece de tempo para si, para explorar as próprias potencialidades, para ser feliz e construir um mundo menos mecanizado e mais sentido.
A irresignação e mobilização de homens e mulheres, assim como a criação de modos de reação talvez possam servir de resistência e forma de recusa em ocupar posição de alvo ou de se deixar modelar. Dançar ao som da música, portanto, não se mostra como melhor opção, pois significa mais do que abrir mão do direito ao lazer, mas, sobretudo, aceitar ser transformado em coisa, desumanizar-se. A negativa em atender ditames impostos pelo mundo dos negócios ao homem talvez se apresente como uma possível forma do humano de repensar o seu papel no mundo, sua relação consigo e com o outro.
Enfim, crê-se que a consciência despertada se apresenta como via para desvelar e iniciar o processo de desarticulação de artifícios e mecanismos artificializadores do mundo, de tudo que o compõe, os quais são identificados e incluídos, tudo leva a crer, pelo desempenho laboral. A vida útil tem tomado o lugar da expectativa de vida, o trabalho vivido como fim demoniza tempo livre e impossibilita que lazer seja verdadeiramente usufruído, portanto, a vida e tudo que nela cabe ganha ares de chão de fábrica. Vale, portanto, se questionar: onde está a “graça”?
Sueli Abreu Guimarães é mestre em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social e doutoranda em Educação pelo FACED/UFBA e integrante do Grupo CORPO/UFBA.
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