Não parecem antagônicos nem conflitantes, mas reforço. Relacionam-se com fidelidade a valores e a modelos e, no entanto, podem opor-se. Basta que o objeto da lealdade torne-se flexível, mutante, e a busca da verdade seja barrada por compromissos momentâneos. Essa é a análise de um dos magistrados mais cultos da atual Suprema Corte dos EUA, Stephen Breyer, e pode servir como aferidor do estado das convicções num mundo cada vez mais passional e irracional.
A reflexão é transferível a qualquer situação em qualquer latitude e pode servir para balizar a infindável produção de juízos e pré-juízos (isto é, preconceitos) relacionados ao mensalão. A Ação Penal 470, embora já em fase de cumprimento das penas, está longe de ser encerrada. E o súbito agravamento do estado de saúde de um dos condenados, o deputado José Genoino, finalmente acrescentou uma dose de humanidade a um caso até então mantido na rígida esfera da ciência jurídica.
A inesperada humanização foi de certa forma providencial (desde que a condição do parlamentar deixe de oferecer motivos de preocupação) porque introduz uma noção de realidade na pretendida algidez e exemplaridade que se pretende dar ao processo. Estamos tratando de seres humanos, a administração da justiça não ocorre in vitro, em ambiente fechado e com objetos inanimados.
A lendária decisão do rei Salomão, mandando cortar a criança de modo a atender às duas mulheres que se assumiam como mães, contém uma advertência crucial: a sentença não era para ser executada; era um teste de maternidade mais rigoroso que a avaliação do DNA para verificar qual das duas reclamantes dizia a verdade. Ganhou aquela que preferiu a criança viva embora entregue à rival.
A severa dosimetria aplicada pelos meritíssimos do STF não pode ser entendida como encenação, é para ser cumprida. O processo não pode perder a sua condição de Rubicão, marco nos anais da nossa Justiça e das instituições republicanas. Nada impede, porém, que perca o seu alto teor letal e a sua dupla ação como fator de demonização e vitimização.
Para isso, imperioso despolitizá-lo. Em outras palavras: imperioso livrá-lo das armadilhas da lealdade partidária e das meias verdades corporativas. A alegação de que os três dirigentes do PT são "presos políticos" funciona no âmbito dos palanques e passeatas, mas como argumento político é uma patranha contra a legalidade do Estado brasileiro, cuja chefia é ocupada legitimamente pela petista Dilma Rousseff.
Se verdadeira a afirmação atribuída ao ex-ministro e ex-governador gaúcho Olívio Dutra, fundador do PT, de que não considera os seus companheiros como presos políticos, estamos no bom caminho. Camaradagem e companheirismo não podem ser usados para desfigurar a lealdade a princípios e valores permanentes. Quando o também gaúcho Tarso Genro, logo em seguida à explosão do escândalo, propôs a refundação do Partido dos Trabalhadores, oferecia um caminho alternativo que, adotado, teria evitado o estresse e o desperdício de indignação dos últimos oito anos. Também teria evitado a carnavalização dos recentes procedimentos judiciais e que retirou da Justiça a indispensável solenidade. O espetáculo da penalização, a exposição pública da penitência e a tentativa de devassar cárceres são um desserviço à verdade, deslealdade com a cidadania.
Alberto Dines é jornalista.