Ao longo de 350 anos, a escravidão foi legal no Brasil Colônia e Império. Tornando a escravidão ilegal, a Lei Áurea teria desfeito o pacto político que mantinha o Brasil como único país imperial na América Latina e como o último a manter a legalidade do sistema escravocrata.
Ainda que não houvesse correlação entre a abolição e a queda do império, o fato é que a República mantém até hoje privilégios imorais, defendidos pelos que os recebem, tanto quanto os escravocratas defendiam seus direitos à posse dos escravos. O foro privilegiado é um exemplo dessas legalidades indecentes, resquícios da sociedade imperial e escravocrata.
Todos os servidores que recebem auxílio-moradia estão corretos em dizer que recebem um benefício legal. Não é roubo, mas, ao ser legal, este benefício fica ainda mais imoral, porque mostra uma República que legaliza privilégios.
Com o salário que recebe, não há razão para juiz ou parlamentar não pagar seu aluguel
Recentemente vimos respeitados juízes defendendo privilégios sob o argumento de que são legais, sem considerar que são incompatíveis com a decência republicana. O juiz Sergio Moro, símbolo da luta recente pela moralidade na política, usa o argumento de que isso é para compensar a falta de reajuste salarial nos últimos dois anos. Não só se beneficia como utiliza o auxílio-moradia para driblar a lei que define os salários. Um argumento indecente para justificar o privilégio que o trabalhador comum não recebe.
Da mesma forma, diversos servidores públicos ultrapassam o teto salarial, definido pela Constituição, com a mudança terminológica de que o teto é para o salário, não para os múltiplos agregados que se somam para formar a remuneração. É a legalização da indecência a que a República se acostumou, tanto quanto o império.
Nada justifica o parlamentar definir seu próprio salário, 35 vezes maior que o mínimo recebido por seus eleitores, e ainda forçar o eleitor a pagar o aluguel da sua casa e também da casa do senador ou deputado sob a forma de auxílio-moradia. Com o salário que recebe, não há razão para juiz ou parlamentar não pagar seu aluguel.
Privilégios legais, mas indecentes, como esses de parlamentares e juízes, estão corroendo a democracia e a República. O auxílio-moradia era legal mesmo para deputados federais e senadores que eram moradores de Brasília e representavam o Distrito Federal. Até hoje é permitido acumular salário de parlamentar com aposentadorias, mesmo além do teto constitucional. Felizmente, alguns se recusaram a receber essas ajudas por fugirem à regra.
A sociedade brasileira se acostumou com o privilégio de que a educação dos filhos dos ricos deve ser melhor do que a educação dos pobres, tomando isso como algo legal, sem perceber que, além de indecente, essa desigualdade é estúpida por impedir o desenvolvimento do potencial dos cérebros de milhões de brasileiros.
Com isso, concentra a renda, impede o aumento da produtividade e da criatividade na economia, e insufla violência e desagrega a sociedade, reproduzindo o maldito sistema de privilégios legais que povoam a sociedade brasileira.