Imagem ilustrativa.| Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo
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Mesmo escrito em 1850, o livro A lei, de Frédéric Bastiát, permanece muito atual e suas lições permitem profundas reflexões. Ele foi escrito em um período de grande turbulência na França, quando fervilhava as consequências da Revolução Francesa de 1848 e da criação da Segunda República Francesa. Embora com mais de um século, a obra de Bastiát pode ser usada para analisar uma lei brasileira bastante conhecida, a Lei 12.933/2013, conhecida como a Lei da Meia-Entrada Estudantil.

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Tal regramento confere aos estudantes o acesso a salas de cinema, teatros, espetáculos musicais, circos, eventos esportivos, entre outros, em todo o território nacional, em estabelecimentos públicos e privados, pagando metade do valor do ingresso cobrado do público em geral. Além disso, a lei determina que é dever do organizador do evento reservar pelo menos 40% da totalidade dos ingressos para a categoria meia-entrada estudantil. E se não bastasse, ainda exige das produtoras a divulgação em tempo real da quantidade de ingressos vendidos e disponíveis na categoria meia-entrada. E – o que não surpreende – o Estado não oferta nenhuma contrapartida ao empresariado.

Esse tipo de espoliação virou moda no Brasil. Atualmente, existem centenas de leis no Brasil que concedem benefícios de meia-entrada para determinadas categorias. Existe um projeto de lei de autoria do senador Romário que obriga os produtores de eventos privados a concederem benefício de meia-entrada em eventos para doadores de sangue, mesmo que não exista nenhuma correlação entre doar sangue e frequentar algum evento. Por fim, existem centenas de leis estaduais ou municipais espalhadas pelo Brasil concedendo este tipo de benefício à população, seja por questões de idade, sexo, profissão, condição de doador de órgãos ou sangue. Superando todos os limites, na cidade de Recife está em vigor a Lei 18.366/2017 que garante aos guardas municipais acesso gratuito aos eventos realizados no município, isso mesmo, existe uma lei institucionalizando a “carteirada” no Brasil.

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Em sua obra, Bastiat tratou brilhantemente sobre o que é uma lei e qual é o seu propósito. Para ele, todo o ser humano tem o direito à vida, à liberdade e à propriedade, e esses direitos existem antes mesmo da existência do Estado. Além disso, as leis deveriam ser criadas para proteger os direitos naturais da vida, liberdade e propriedade privada. Portanto, a lei é a organização coletiva do direito individual de legítima defesa. O direito natural não é exatamente uma criação do autor, tal tema foi amplamente debatido por filósofos como Aristóteles até autores do século XX como Norberto Bobbio. Nenhuma lei poderia ser criada com o objetivo de frustrar os direitos naturais da vida, liberdade e propriedade privada, estando tais direitos inclusive acima da lei. E um governo só atingiria seu propósito ao criar leis caso não interferisse na propriedade privada das pessoas.

O autor atribui a perversão da lei a duas causas, a ambição estúpida e a falsa filantropia, ambas frequentemente presentes em nossa sociedade. Ao criar leis baseadas na ambição estúpida ou na falsa filantropia, inevitavelmente o legislador estará criando leis que resultarão na espoliação da propriedade privada, gerando transferência injusta de capital, espoliação institucionalizada e, por fim, na vontade dos entes da sociedade de criar cada vez mais leis cujo resultado interfira na propriedade privada. Nesse contexto é que cada dia mais surgem leis como a da meia-entrada no Brasil, sob a falácia da falsa filantropia.

O livro de Bastiát ainda nos ensina a identificar se estamos diante de uma espoliação legalizada. Em suma, basta verificar se a lei toma os recursos de uns para dá-los a outros que não são seus reais detentores, ou ainda, verificar se ela beneficia um cidadão em detrimento de outros. Após uma breve leitura dos ensinamentos do autor, fica tão fácil perceber que essa lei encaixa-se perfeitamente no conceito de espoliação legalizada, tirando os recursos do empreendedor do evento e consequentemente das pessoas que adquirem o ingresso pelo preço cheio e concedendo um benefício para os favorecidos pela lei.

Bastiát ainda comenta que a fraternidade universal destrói a liberdade do indivíduo, sendo impossível separar a palavra fraternidade da palavra voluntária, o que claramente não ocorre no caso concreto em pauta.

Segundo o escritor francês, nenhuma lei de caridade poderia existir, pois ela sempre fere a propriedade privada de uma parte da sociedade, uma vez que o Estado não é criador de riqueza e essas leis dependem de um financiamento da iniciativa privada. Se tal financiamento não for voluntário, inevitavelmente estamos diante de uma espoliação.

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Esses pensamentos de Estado caridoso, a meu ver espoliador, eram defendidos pela mentalidade socialista do século XVII e ainda estão presentes nos dias de hoje. O pensamento socialista deseja ocupar o lugar de Deus e, assim, despreza a humanidade e a individualidade.

No caso de eventos, imagine um produtor que deseja comercializar ingressos para seu espetáculo e decide cobrar o valor de R$ 100 por ingresso, em um local com capacidade máxima de 200 pessoas. Antes do advento da lei da meia-entrada, ao vender todos os ingressos, o valor arrecadado pelo produtor do evento teria sido de R$ 20 mil e, em seu orçamento, esse valor seria suficiente para arcar com os custos de produção e ainda gerar lucros. Com a promulgação da lei, o empresário precisa, sob a força da lei, destinar 40% dos ingressos com o preço de R$ 50. Logo, se vender todos os ingressos terá uma arrecadação de R$ 16 mil, 20% menor que a anterior. A consequência lógica será aumentar o preço do ingresso cheio para compensar as perdas. Vale mencionar que os custos de produção continuam os mesmos nos dois cenários.Não importa se os empresários resolveram diminuir sua margem de lucro ou se aumentaram o preço geral do ingresso, estamos diante de uma espoliação da propriedade privada criada pela lei, a qual fere o direito natural das pessoas.

Importante dizer que Bastiat também se manifestou contrário às políticas protecionistas criadas pelo Estado, uma vez que seguiam a mesma lógica de espoliação e não proteção da propriedade privada e liberdade do indivíduo.

Assim como a lei da meia-entrada, existem outras centenas ou milhares de leis similares no Brasil. Essas podem até parecer positivas aos leigos, porém, além de ser uma espoliação legalizada, quase nunca conseguem atingir o objetivo desejado. No caso da meia-entrada, deveria ser uma escolha do empresário conceder qualquer benefício de desconto a estudantes, idosos ou qualquer outra categoria da sociedade e não uma obrigação imposta pelo Estado.

João Paulo Kitsis de Almeida Castro é graduado em Direito, pós-graduado em Gestão de Negócios e Mercado Financeiro e Capitais, e diretor da Sympla. É associado do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo - IFL-SP.

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