O projeto de 7.596, que criminaliza o abuso de autoridade de juízes, procuradores e policiais, foi aprovado na Câmara dos Deputados por 342 votos favoráveis e 83 contra. A proposta havia passado pelo crivo do Senado, em 2017.
O encaminhamento era necessário. Inclui, corretamente, todos os cidadãos, também as autoridades dos Três Poderes e os membros do Ministério Público, sob o império da lei. Haverá consequências jurídicas – estão previstas sanções penais – para quem dolosamente utilizar o cargo público para finalidades estranhas à lei. A democracia reclama respeito à legislação. Sem exceções.
No entanto, o momento escolhido para a aprovação e os seus bastidores levantam fundadas suspeitas de blindagem do banditismo e de renovada tentativa, talvez a mais contundente, de ataque corporativo à Lava Jato.
No mesmo dia em que os deputados federais aprovaram a MP da Liberdade Econômica, medida oportuna e necessária, os parlamentares resolveram algemar juízes, membros do Ministério Público, policiais e vários outros agentes públicos ao aprovar, sem nenhuma discussão, um texto para lá de polêmico.
A pretensão da lei é correta, mas foi feita sem transparência, carregada de ambiguidades e na hora errada
Coibir abusos, por óbvio, é necessário. Mas o texto aprovado deixa inúmeras brechas para retaliação de réus e investigados contra os que os investigam, acusam e condenam.
O simples fato de os deputados terem se escondido, recorrendo à votação simbólica em vez da votação nominal, já demonstra as intenções pouco transparentes daqueles que gostariam de ver a legislação aprovada.
O texto referendado pela Câmara não é a lei que a sociedade brasileira esperava. Parlamentares aproveitaram o momento de fragilidade da Lava Jato, acossada por forte tiroteio desfechado por suposta fonte anônima e por uma astuta operação de desconstrução da imagem dos protagonistas da Força Tarefa, para obter um passaporte para a impunidade.
Como informou esta Gazeta do Povo, com matéria oportuna e sugestiva, o texto votado, apesar de vir com o nome do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), era obra dos também senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Roberto Requião (MDB-PR, que não se reelegeu em 2018). Havia dois projetos na casa: O 280/16, de Calheiros, ele mesmo, altamente revanchista e arbitrário, e o 85/17, de Rodrigues, sensato e equilibrado. Eles passaram a tramitar juntos, e o relator Requião, figura bem conhecida, ficou basicamente com o texto de Calheiros, jogando fora o trabalho do senador da Rede. As versões iniciais eram tão absurdas que instituíam até mesmo o “crime de hermenêutica”, dando margem a processos contra juízes que tivessem suas decisões revertidas em instâncias superiores. Requião resistiu, mas acabou polindo as versões seguintes. O projeto aprovado pelo Senado e remetido à Câmara não incluíram o “crime de hermenêutica”, mas manteve uma série de expressões deliberadamente vagas.
A estratégia adotada tanto no Senado quanto na Câmara, onde o relator foi o deputado Ricardo Barros (PP-PR), foi misturar condutas que realmente configuram abuso de autoridade com outras definições que dão margem à interpretação. O que é, por exemplo, uma condução coercitiva “manifestamente descabida”? Como saber se uma investigação está sendo “injustificadamente” estendida? Mesmo uma situação real e condenável, que ocorre quando um magistrado pede vista de um processo e demora a devolvê-lo, se torna crime de abuso de autoridade quando o juiz se demorar “demasiada e injustificadamente”, sem que o projeto defina exatamente o que isso signifique.
A pretensão da lei é correta, mas foi feita sem transparência, carregada de ambiguidades e na hora errada. O que o País menos deseja é que, em nome de uma boa causa (o combate ao abuso de autoridade), acabe tudo desembocando no pântano da impunidade.
Alguns vetos do presidente Jair Bolsonaro podem, talvez, corrigir o tom subjetivo, vago e excessivamente interpretativo da nova lei.
Carlos Alberto Di Franco é jornalista.
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