A Lei n.º 8.313 de 1991, chamada Lei Rouanet, é frequentemente objeto de polêmicas em meios de comunicação e mídias sociais. Só na última semana a “ideia legislativa” do Senado para sua revogação recebeu mais de 45 mil apoios; a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara questionou em audiência a aprovação de projetos para proponentes devedores; e a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado criada para apurar maus-tratos a crianças e a adolescentes convidou o Ministro da Cultura para prestar esclarecimentos sobre a destinação de recursos para a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira.
Infelizmente, em grande parte das vezes, o debate sobre o assunto é conduzido a partir de falsas premissas e enganos acerca do funcionamento e resultados da política. Não raro, tomam-se os desvios na utilização da Lei como se regra fossem. Nossa intenção aqui é colaborar com a discussão desconstruindo alguns mitos bastante comuns a esse respeito.
Os setores culturais já representam parcela significativa do PIB nacional e têm taxas de crescimento e empregabilidade acima de setores tradicionais da economia
A Lei Rouanet foi aprovada em um contexto de reformas político-institucionais promovidas pelo então presidente Fernando Collor de Mello para reduzir o aparato Estatal, inclusive no campo da cultura. Meses antes, extinguira o Ministério da Cultura, transformando-o em Secretaria vinculada à presidência. A proposta da Lei era diminuir a participação do Estado como único apoiador da cultura, incentivando a iniciativa privada a colaborar com o financiamento de projetos culturais.
Desse modo, a Lei Rouanet, ao instituir o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), buscou diversificar as formas de captação e canalização de recursos para o setor cultural, pautando-se em três mecanismos: (1) o Fundo Nacional de Cultura (FNC); (2) os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) – nunca implementados; (3) e o mecenato através do incentivo fiscal. Este último, que costuma ser objeto de questionamentos, é apenas um dos três instrumentos previstos na legislação.
De modo geral, o mecenato funciona da seguinte maneira: um proponente apresenta um projeto cultural junto ao Ministério da Cultura, que faz uma avaliação de viabilidade técnica e financeira e adequação aos termos da Lei. Uma vez aprovado, cabe ao próprio proponente buscar o apoio de pessoas físicas e jurídicas, que poderão deduzir de seu imposto os aportes realizados na iniciativa. Com a captação de recursos, passa-se à execução do projeto e prestação de contas ao final do processo.
Opinião da Gazeta: Necessários incentivos culturais (editorial de 06 de fevereiro de 2016)
Importante reforçar que o Ministério, nessa análise, não faz qualquer tipo de juízo estético, político-ideológico ou pertinência temática – o que constituiria inclusive crime, nos termos do artigo 39. Por esse motivo, são aprovados projetos culturais que podem acabar gerando algum tipo de comoção midiática; por exemplo, quando o artista teria capacidade de se autofinanciar sem a ajuda de recursos públicos.
Na prática, quem escolhe quais projetos serão efetivamente incentivados é a própria iniciativa privada, que decide onde irá alocar os recursos do incentivo fiscal. Logo, trata-se de uma política de viés liberal, pois não está tipicamente pautada no intervencionismo ou dirigismo do Estado, delegando ao particular a decisão sobre quais projetos que merecem ou não ser apoiados. Por outro lado, ao se permitir a dedução integral de recursos, o Poder Público continua assumindo os custos do projeto cultural e do marketing aproveitado pelos apoiadores.
Essa lógica do mecenato ajuda a explicar também a tendência de concentração de recursos em algumas categorias de projeto, proponentes e regiões. Afinal, o apoiador tende a procurar aquelas iniciativas que lhe renderão maior visibilidade e retorno de imagem. A título de exemplo, entre 1996 e 2015, os dez seguimentos culturais mais expressivos representaram 74,65% do total de projetos aprovados e 73,20% do montante captado. O Sudeste, por sua vez, foi responsável por mais de 65% do total de projetos aprovados e mais de 75% do total de captação em 2015. Portanto, o mecenato acaba não dando conta de atender à diversidade de expressões culturais e de projetos de todo o Brasil.
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Esse fato não seria um problema em si se se adotassem medidas indutoras ou regulatórias para corrigir as distorções e se o mecenato, sozinho, não representasse parcela substancial dos recursos destinados ao setor. Entre 2010 e 2015, o total captado pela Lei Rouanet foi de aproximadamente R$ 7,5 bilhões, o equivalente ao orçamento efetivamente executado para a “função” cultura no mesmo período. De maneira que a simples extinção da Lei Rouanet seria medida atentatória à cultura brasileira – extinguindo parte significativa de seus escassos recursos.
Ainda seria possível discorrer sobre muitos outros pontos sobre a Lei Rouanet, tais como: a participação e perfil dos maiores apoiadores, a escassez de recursos do Fundo Nacional de Cultura, as decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o assunto, as recentes alterações trazidas pelo Ministério, os gargalos prestação de contas, entre outros. Quisemos aqui trazer apenas algumas das considerações que entendemos relevantes tendo em vista as últimas notícias sobre o tema.Certamente, nos cabe refletir como aprimorá-la e exercitar a criatividade sobre outras formas de financiamento ao setor. As discussões não podem estar focadas apenas em seus desacertos e limitações.
As políticas culturais estão dentre aquelas especialmente vocacionadas ao futuro, sobre o que queremos ser e onde queremos chegar. Tratam de nossa identidade, nossos valores, sonhos, formas de fazer e interpretar o mundo. Outrossim, não é pouco lembrar que os setores culturais (e criativos) já representam parcela significativa do PIB nacional, apresentando taxas de crescimento e empregabilidade acima de setores tradicionais da economia. Por qualquer viés, deve-se situar a cultura como centro das políticas públicas, não apenas sob competência de uma pasta isolada. Esperemos que o poder público e a população tomem consciência do enorme potencial de nossa cultura.