No preâmbulo de seu tratado monumental, a inteligência superior de Pontes de Miranda fez assinalar que o Direito é um “sistema lógico”, devendo enaltecer imperativa relação de coerência com a realidade da vida. Todavia, no Brasil, a lógica, não raro, desconhece a razão. Logo, entre as sinuosidades do viver, é possível que as leis se distanciem da concretude dos fatos, abrindo via para o bacilo da injustiça e suas abstrações destrutivas. Na verdade, quando a legalidade flutua, perdendo o chão, a justiça vira um eco distante; um som sem mensagem; palavras sem verbo; frases sem sujeito.
Leis e realidade formam, assim, necessária simbiose dinâmica. Quanto ao ponto, a memória faz lembrar judicioso voto do eminente ministro Milton Luiz Pereira ao afirmar que “a interpretação das disposições legais não pode desconsiderar a realidade das informações processuais, a natureza das coisas ou a lógica do razoável. Com afeição à instrumentalidade do processo meio e não fim, deve guardar o sentido equitativo, lógico e acorde com circunstâncias objetivamente demonstradas. O direito não é injusto ou desajustado à dita realidade”. Eis, a lição: o direito injusto leva a uma realidade desajustada.
Não faz qualquer sentido um país tropical querer produzir moradias de neve. O problema é que há inúmeros “iglus” na assistemática legislação brasileira.
Sim, um dos gargalos centrais de nossa institucionalidade republicana é a baixa aderência da legalidade aos fatos da vida. Estruturalmente, as leis podem ser ruins, ou seja, o Legislativo produziu uma regra desigual, omissa, desparametrizada, errática ou irrazoável. Nesse contexto, por mecanismos hermenêuticos de integração da ordem jurídica, tanto o Executivo, como o Judiciário poderão, em suas esferas de competência, procurar adequar as palavras da lei aos limites do possível, visando otimizar os resultados práticos da norma. Mas há defeitos sem conserto, pois a Constituição não aceita curvas onde reta está.
Sem cortinas, no tocante às deficiências do processo de criação do Direito, os problemas são muitos e variados. Para facilitar a compreensão, centraremos a análise naquilo que chamaremos de “falácia do iglu”. Hipoteticamente, vamos supor que para estimular a economia e o pleno emprego no país o Congresso Nacional acabasse por aprovar lei, incentivando a produção de “iglus” brasileiros.
Como medida de política habitacional aos mais carentes, seria garantida compra de até 70% pelo poder público, reservando-se os 30% restantes para destinação ao mercado externado, indicando pauta de fomento à internacionalização de empresas nacionais. Como cereja do bolo, para aumentar ainda mais a atratividade dos iglus “made in Brazil”, seriam previstas linhas de crédito por bancos públicos, com encargos subsidiados e prazo de pagamento alongados.
Ora, o exemplo acima é completamente estapafúrdio. Afinal, não faz qualquer sentido um país tropical querer produzir moradias de neve. O problema é que há inúmeros “iglus” na assistemática legislação brasileira. Ilustrativamente, muitos incentivos ou renúncias fiscais acabam sendo direcionados para atividades – que só se mantêm ativas – justamente por receberem favores legais teleguiados. Em condições normais de temperatura e pressão, tais “iglus” simplesmente derreteriam, pois superados em seus métodos produtivos, inovação e lucratividade. Ou seja, os tais “iglus” são uma autêntica fria legislativa e só existem pela ruptura de preceitos de independência, bom senso, espírito público, impessoalidade e eficiência republicana.
Aqui chegando, entramos em ciranda conhecida: a lei defectiva gera litigiosidade, inundando o Judiciário com processos sem fim; pode acontecer, ainda, de uma lei acessória criar obrigatoriedade de telhados vermelhos sobre os iglus tupiniquins; inconformados, os produtores de telhas azuis entram na Justiça, suscitando quebra da isonomia constitucional e violação da paridade de armas do livre mercado; inesperadamente, uma liminar monocrática garante o direito a telhas verdes, inaugurando sucessivos recursos intermináveis.
Entre intempéries de irracionalidade, a legalidade acaba moída em um sistema anacrônico, confuso e disfuncional. Agora, os ilusionistas do momento descobriram que o problema da inflação é o sistema de metas e, não, a inflação em si. Assim, na espiral do retrocesso, mais um “iglu” está sendo colocado no forno...
De tudo, uma certeza: o Direito, para ser justo, precisa de leis lógicas e sérias. Do contrário, o atraso é traço histórico recorrente. Sobre o Brasil de amanhã? Basta olhar o ontem.
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.