Baixando das nuvens da imparcialidade absoluta da toga, que só tem o único olho descoberto para ler os processos e peneirar as informações, os fatos, as evidências e alegações das partes pelo texto sagrado dos autos, a Justiça ouviu o surdo clamor popular, os ecos da indignação das ruas, o grito de revolta travado na goela e decidiu opor a barreira da decência para cercar os acordos tecidos nos porões do Congresso e nas esquinas do Executivo para garantir a impunidade das dezenas dos envolvidos no escândalo da corrupção.
A safra de cada dia é estimulante. Cutucada pela vara dos magistrados e advertida pela ainda tímida e enrustida repulsa da população, as reservas morais do Congresso reagiram à negligência dos presidentes da Câmara e do Senado e estão virando a mesa. Na brisa das boas novas, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE-RJ) vetou, por significativos cinco votos a um, as candidaturas à reeleição dos deputados federais Fernando Gonçalves (PTB), Reinaldo Gripp (PL), Paulo Baltazar (PSB) e Elaine Costa (PTB) desconhecidos fora do círculo doméstico e da corriola dos cupinchas acusados de envolvimento com a máfia dos sanguessugas.
O TRE baseou-se nas investigações da CPI dos Sanguessugas, consideradas suficientes, para apartar da briga pela manutenção de um melhores empregos do mundo os que não se contentaram com as mordomias, vantagens, benefícios, passagens aéreas e a indecorosa verba indenizatória e embolsaram propinas de 10% a 15% com a compra de ambulâncias e ônibus escolares superfaturados na trama de cartas marcadas da destinação de verbas orçamentárias para prefeituras da confraria.
O colegiado do TRE-RJ indeferiu, pela unanimidade de seis votos a zero, o registro da candidatura do ex-deputado Eurico Miranda (PP-RJ), de expressivo prontuário, com processos criminais correndo na Justiça, federal e estadual, que escalam do furto ao crime de sonegação fiscal.
Não é só. A lista passa pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e acende as luzes do alarme: dos 2.742 registros de candidaturas às próximas eleições, 332 foram indeferidas e, entre as 12,11% das descartadas, luzem os impolutos petistas João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara, e a deputada Ângela Guadagnin, de súbita fama com os inesquecíveis requebros, em plenário, no show do deboche pela absolvição do companheiro petista, deputado João Magno, acusado de receber R$ 420 mil do valerioduto. Todos agraciados com o perdão do novo PT agastado com a ética e incluídos no rol dos candidatos da legenda.
Os bons exemplos frutificam. No Conselho de Ética do Senado, o motim dos senadores contra a generosidade do presidente, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que apelou para um recurso engenhoso para o benefício do adiamento do início do processo de cassação dos senadores Ney Suassuna (PMDB-PB) e Magno Malta (PL-ES), ambos no bolo dos acusados de participar do rateio de propinas da gangue dos sanguessugas, impôs a devolução das denúncias à Mesa do Senado. O ladino presidente Renan prometeu ouvir os sete membros da Mesa em 24 horas.
Com tais sinais no azul do horizonte, o candidato oposicionista, Geraldo Alckmin, subiu algumas notas no tom do discurso anódino e impostou a voz na crítica ao adversário Lula, líder nas pesquisas. Qualificou de "desastre ético" o governo, e foi além: "A corrupção não é um fato isolado, mensalão é uma coisa que atenta contra a democracia porque é um poder comprando o outro".
Não é muito, mas já é alguma coisa. A reação que sacode a inércia cúmplice da maioria da Câmara espalhada pelo baixo claro, que contamina o Senado e que se dilui nas desculpas do governo, aposta as últimas fichas de esperança no Judiciário.
A responsabilidade pelo futuro da democracia restaurada em 15 de janeiro de 1985, com a eleição do presidente Tancredo Neves, que não chegou a tomar posse, está nas mãos do Supremo Tribunal Federal. Está em boas mãos.
De ditadura estamos fartos. Antes que a explosão popular chegue aos quartéis, o voto e a toga têm deveres a cumprir.
E é para já. Não merecemos outro 1.° de abril.
Villas-Bôas Corrêa é analista político.