Há dois anos, em 21 de maio de 2021, partiu definitivamente do Paraná o arquiteto Jaime Lerner. Internacionalmente, Lerner é merecidamente lembrado como o gestor municipal que revolucionou o urbanismo de Curitiba. À frente da prefeitura da capital por três mandatos, ele foi reconhecido e copiado pelo mundo por seus terminais integrados de transporte, com canaletas exclusivas para ônibus, e por arborizar e embelezar a cidade. Apesar desse grandioso legado na capital, dentro das fronteiras do estado Lerner é mais lembrado como o governador de dois mandatos que impôs resistentes cancelas à liberdade de ir e vir dos paranaenses. Sim, esse é mais um texto sobre os caros pedágios do Paraná. Mas não só isso: é, também, um texto sobre direitos, liberdades e uma luz no fim desse longo e escuro túnel rodoviário paranaense.
É evidente que qualquer direito tem um custo. A garantia de vida e propriedade privada custam, no mínimo, a manutenção de um sistema de policiamento vigilante e responsivo e de todo um Sistema Judiciário que resolva disputas. O direito democrático ao voto custa um inchado sistema de Justiça Eleitoral. O fato é que direitos são rotulados como invioláveis mas, como qualquer outra necessidade, podem em algum momento esbarrar na escassez de recursos. E quando não há recursos públicos, extraídos da renda de cada um, que sustentem um direito cravado na Carta Magna, o que o Estado pode fazer? Buscar esses recursos de fundos privados.
Que Lerner siga descansando em paz e que descansem em paz também, brevemente, as tarifas de pedágio mais caras do Brasil.
Pois bem, o direito constitucional à liberdade de locomoção custa a manutenção de muita infraestrutura e, notadamente, das estradas. Em meados da década de 90, quando estradas se deterioravam e fundos públicos raleavam em velocidades igualmente altas, Lerner buscou uma solução que defensores da liberdade viram com bons olhos. O governador conseguiu que a União delegasse as rodovias federais ao governo estadual (tirando decisões de Brasília e aproximando dos paranaenses) e foi um dos primeiros governadores a anunciar que buscaria parceiros privados para ajudar o poder público.
Em 1997, vieram a licitação e a assinatura do contrato. Já em 1998, veio o persistente calafrio dos paranaenses: rodar naquelas estradas, de fato melhores, custava uma tarifa altíssima e muito possivelmente duradoura – o contrato tinha prazo de validade de 24 anos, indo até o final de 2021. O longo contrato, para piorar, não previa nenhuma possibilidade de reajuste do retorno que as empresas poderiam buscar. Em ano eleitoral, buscando seu segundo mandato, Lerner baixou a tarifa na canetada – a partir daí, foi só ladeira (mal asfaltada) abaixo.
Em acordos escusos e paralelos, como a Lava Jato escancarou, começaram já nesta época os pagamentos de propina para que o estado brecasse a fiscalização dos serviços prestados pelas concessionárias. Em acordos judiciais, as empresas frearam as obras de duplicação. Passamos pelas brigas e promessas não cumpridas de Requião (não abaixou, muito menos acabou), pela escalada da corrupção pedagiada ao primeiro escalão no governo de Beto Richa (como denunciado pela Lava Jato) e por três inefetivas CPIs dos pedágios na Assembleia Legislativa. Em 2022, algum alívio: passar livremente pelas cancelas dos postos de pedágio do estado (pegaria mal ver o pedágio mais caro do Brasil reimplantado em pleno ano eleitoral). Só não se conseguiu passar ainda por estradas decentes e duplicadas no Paraná.
Lerner sustentou até nos deixar que os pedágios eram a “única alternativa viável” para o Paraná. Está correto: não há dinheiro público suficiente que garanta plenamente o direito de ir e vir sem deixar de lado alguns dos outros direitos. O Paraná certamente precisava e ainda precisa de pedágios, mas também certamente não precisava daquele modelo de pedágios. Mal desenhado por Lerner e repetidamente enfrentando populismo eleitoreiro, o traumatizante modelo de pedágios que vigorou até 2021 gerou as tarifas mais caras do Brasil. Mal fiscalizadas por todos os governos estaduais que seguiram Lerner, importantes obras de manutenção e duplicação viária não foram entregues mesmo que tenham sido pagas. Não há discussão: o combinado saiu caro.
E, para além ainda das altas tarifas e do dinheiro escoado para corrupção, quanto custaram as velhas cancelas? O escoamento de toda a comida produzida pelo estado é pesadamente comprometido em meio a acidentes, bloqueios e perdas de tempo. A região Oeste do Paraná, a mais distante do Porto de Paranaguá, tem cinco das dez cidades paranaenses que mais produzem e tem na BR-277, majoritariamente não duplicada depois de décadas de promessas, o único caminho para que nossas exportações cheguem aos navios. Enquanto a produção paranaense, ano após ano, decola, os navios esperam e o asfalto – literalmente – afunda. Com isso, a 277 que barra as exportações é também a rodovia federal que mais mata dentre as que cortam o Paraná. Chegamos, aqui, ao mais alarmante disso tudo: as rodovias em estado de decomposição custam centenas de vidas anualmente, e essa é a maior das tarifas que a má gestão da coisa pública impõe. O Paraná é o segundo estado que mais produz soja e milho no país, e também o segundo estado onde as rodovias mais matam a cada ano. No Paraná, o Estado vem violando não só o direito à liberdade de locomoção, mas também à prosperidade, à segurança e à vida. Roberto Campos, falecido durante o segundo mandato de Lerner, já cravava: “O bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito”.
Surpreendentemente, entretanto, parece que vem algum “bem” por aí. Depois de ter freado o desenho de soluções para o problema dos pedágios durante a transição de governos, o governo federal se reuniu com o governador paranaense para finalmente assinar o que faltava. Em agosto e setembro deste ano, na Bolsa, serão feitos os leilões dos primeiros lotes do maior programa de concessões rodoviárias da América Latina – rótulo grandioso que condiz com a solução do problema que tão grandiosamente aflige o Paraná. Nos primeiros dois anos de concessão, o foco será na recuperação das estradas (sem os cuidados devidos desde o fim do contrato de Lerner, em 2021) para, a partir do terceiro ano, haver obras de duplicação.
No total, serão 55 bilhões de reais em obras de ampliação, com R$ 30 bi aplicados já nos primeiros oito anos dos 30 de contrato. Dos 3,3 mil quilômetros de concessões, prometem 1,8 mil quilômetros de duplicações. Ganhará a empresa que oferecer o maior desconto na tarifa e, se der certo, ganharemos todos. Aliás, a empresa não: as empresas. Para promover a livre competição, os lotes serão leiloados de maneira separada e diferentes concessionárias podem ganhar diferentes trechos – incluindo, infelizmente, as mesmas empresas que não cumpriram o acordo original, que poderão lucrar mais uma vez com as obras que escolheram não entregar na primeira oportunidade. Como temos falado de direitos e justiça, é bom notar que está prevista também uma nova e mais justa metodologia de cobrança: o free flow. A cobrança não se dará mais em cancelas, mas digitalmente com pórticos ao longo da rodovia que escaneiam uma tag do usuário e cobram de acordo com o trecho percorrido. Parece sonho: o custo da liberdade deve ficar menor.
Como prefeito, Lerner foi livre para sonhar e, com habilidade de inspirar e executar, tornou realidade sua capital dos sonhos, deixando diversos legados para a mobilidade urbana. Com as novas concessões, há nova chance de ver essa boa mobilidade também em boas estradas pelo Paraná, superando as cancelas erigidas há décadas. Que Lerner siga descansando em paz e que descansem em paz também, brevemente, as tarifas de pedágio mais caras do Brasil.
Henrique Mecabô é vice-presidente do Podemos no Paraná.