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Liberdade de decisão, liberdade para estar protegido

Déficit primário do governo central deve quadruplicar por causa de coronavírus
O Viaduto do Chá, em São Paulo, vazio durante a quarentena. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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A pandemia do novo coronavírus trouxe um momento peculiar para a população global: o enfrentamento em escala mundial de uma doença pouco conhecida. Verdade que o mundo já enfrentou situações similares, como a gripe espanhola e a peste negra, mas em condições amplamente diferentes. Para além da enorme distância no contingente populacional entre tais épocas, a forte interligação entre pessoas, empresas e países de todo o mundo e a facilidade de deslocamento atual tornam o ambiente muito mais amigável para a proliferação de doenças.

Diversas medidas têm sido tomadas pelos governantes em todo o mundo para tentar mitigar os estragos da Covid-19. Ampliação da capacidade de atendimento hospitalar, pesquisas para encontrar formas de combater o vírus, campanhas para aumento dos cuidados básicos de proteção e higiene. Notoriamente, a mais polêmica de todas é a adoção do isolamento social, majoritariamente defendida como a medida mais eficaz para atrasar e diminuir a disseminação do vírus. Em alguns lugares, como regiões da Espanha, cidadãos que saiam às ruas estão sujeitos a multas e até a serem presos.

Como indivíduos vivendo em sociedades democráticas, qual o limite que devemos aceitar? Até que ponto esse tipo de medida protege a maioria da população e a partir de qual passa a ser um ataque direto à nossa liberdade?

Debater sobre liberdade demanda compreensão da tradição filosófica sobre o tema desde, no mínimo, Benjamim Constant, passando por Isaiah Berlin e chegando a Dworkin, Taylor, Rawls e Nozick. Conhecer essa temática significa conhecer as proposições de liberdade dos antigos vs. dos modernos, de Constant; e liberdade negativa vs. positiva, de Berlin.

O primeiro filósofo a dar uma verdadeira estrutura conceitual que tornou possível o debate sobre as diferentes visões acerca da liberdade na filosofia foi Isaiah Berlin. Em seu ensaio Dois conceitos de liberdade, Berlin apresenta uma distinção entre as visões sobre liberdade distinguíveis na história da filosofia política: a liberdade negativa e a liberdade positiva. A primeira é aquela na qual nada constrange o indivíduo de realizar o que entende que deve (geralmente ligada às ideias liberais) –  ou seja, significa estar livre de; ou, ainda melhor, não interferência. A segunda é aquela na qual o desejo é permitido ao indivíduo (geralmente ligada às ideias intervencionistas) – ou seja, estar livre para; ou, ainda, autodomínio.

Em seu discurso “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, Benjamin Constant defendeu que havia uma clara distinção entre a visão de liberdade dos povos antigos e a dos modernos. Seu argumento está assim construído: O tamanho dos Estados antigos levava a que sempre estivessem em clima belicoso. Todos os Estados compravam a existência inteira ao preço da guerra. As nações modernas são mais extensas e complexas, mais fortes e esclarecidas. Assim sendo, tendem à paz (por não precisarem de conquistas nem temerem ser conquistadas). Procuram possuir o que desejam pelo comércio e não mais pela guerra. O comércio permite aos homens livres das nações modernas a ocupação com suas questões privadas (dos seus empreendimentos) – e não mais tão intensa e rotineiramente com as públicas –, o amor pela independência individual e a satisfação de seus desejos, sem a intervenção da autoridade.

Daí, afirma Constant, “conclui-se que devemos ser bem mais apegados que os antigos à nossa independência individual. Pois os antigos, quando sacrificavam essa independência aos direitos políticos, sacrificavam menos para obter mais; enquanto que, fazendo o mesmo sacrifício, nós daríamos mais para obter menos. O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios”.

Para Berlin, essa distinção entre liberdades se dá entre uma que é positiva e outra que é negativa. A liberdade positiva é aquela em que o indivíduo almeja ser seu próprio amo e senhor e, assim, necessita ser parte do soberano (como defendia Rousseau). Essa é a liberdade dos povos antigos de Constant. A liberdade negativa é aquela em que o indivíduo está livre (ou sob o mínimo) de restrições externas, da intervenção do soberano; a liberdade dos povos modernos do filósofo francês.

Muitos liberais argumentaram que a implementação de ações visando uma liberdade positiva carregaria em si o germe do autoritarismo. Embora a defesa de Berlin sobre os dois conceitos de liberdade seja muito bem construída e busque aplicar o entendimento pluralista das opções humanas (em detrimento do monismo) – o que significa dizer que as aspirações humanas são diversas e em muitos casos conflitantes –, existem críticas fortes aos argumentos do teórico social russo-britânico. Uma das mais contundentes é a que afirma que a teoria de Berlin desconsidera a interligação entre valores sociais, ou melhor, entre a liberdade e os demais valores sociais, como justiça e igualdade.

Trata-se de concepções diferentes, divergentes até, mas ainda assim tentativas de explicações da realidade. Isso significa dizer que as atividades e comportamentos humanos são muito mais complexos do que é possível condensar em duas visões separadas (e apenas duas). Como admitiram tanto Constant quanto Berlin, cada uma das duas formas de liberdade (dos antigos vs. dos modernos, para o primeiro; e positiva vs. negativa, para o segundo) tem suas qualidades e defeitos.

Analisando-se os momentos históricos modernos e contemporâneos, contudo, em que as configurações políticas estiveram mais pautadas por uma ou por outra, observa-se que as tendências mais intervencionistas (liberdade dos antigos / liberdade positiva) levaram a repressão, autoritarismo e assassinatos em massa, com pouquíssimos ou quase nenhum ganho na participação popular no soberano (a não ser no discurso público dos governantes de plantão).

No outro espectro (liberdade dos modernos / liberdade negativa), enquanto os indivíduos tiveram limitação de sua participação no soberano (participando mesmo indiretamente, por meio de eleições de representantes) e experimentaram desigualdades econômicas, sociais e de acesso a serviços (como educação e saúde) – o que não quer dizer que também não tenha havido em sociedades adotantes da liberdade positiva –, houve um grande ganho em sua liberdade no sentido de não intervenção e agressões à sua vida privada.

Quando governos obrigam cidadãos a ficarem presos em suas residências em nome da proteção do todo, da comunidade, sem dúvida pautam-se em uma visão de mundo de liberdade positiva: “meus governados são livres para estarem protegidos do vírus”. Pesquisa recente do Datafolha demonstrou que quase 80% da população brasileira defende que pessoas sejam punidas por violarem a quarentena. O perigo é passarmos a achar isso normal.

Marcos Pena Jr. é economista e escritor.

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