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Não foi à toa que a Constituição de 1988 consagrou a liberdade de imprensa como uma das garantias fundamentais, ao lado da liberdade de opinião e expressão. De fato, o trabalho realizado pela imprensa, ao longo da história, promovendo importantes campanhas de conscientização e de cidadania, revelando descobertas, auxiliando na investigação de crimes, contribuindo no combate à corrupção, muito ajudou no aprimoramento da democracia e até mesmo no seu retorno, como ocorreu na campanha pela redemocratização do Brasil, na década de 1980.
Se recordarmos, por exemplo, o trabalho feito pela imprensa no fim do século 19, em favor da campanha abolicionista; e nas décadas de 40 e início de 50, na campanha do Petróleo é Nosso, veremos quão importante foi seu papel histórico para o país, contribuindo para a defesa da liberdade e da igualdade e para o crescimento econômico do país.
No Paraná, a imprensa liderou campanhas pelos royalties da usina de Itaipu, pela demarcação do mar territorial paranaense e pelo combate à corrupção, no escândalo dos Diários Secretos na Assembleia Legislativa, por meio da campanha “O Paraná que Queremos”. Também sempre esteve ao lado da campanha pelo Tribunal Regional Federal da 6.a Região, com sede em Curitiba.
Nos anos 70, a imprensa fez um trabalho extraordinário em favor da saúde pública, divulgando notícias sobre meningite, doença até então desconhecida pela população brasileira e que ameaçou um surto no país, apesar das negativas do governo da época, que omitia a existência da doença. Lá estava a imprensa, divulgando as ocorrências, investigando e procurando esclarecer a população sobre sintomas e os cuidados a serem tomados. Inacreditavelmente, noticiar a amplitude que a doença vinha tomando, registrada pelos inúmeros casos verificados nos hospitais paulistas, passou a ser alvo de censura. A imprensa resistiu, e em 1974 iniciou-se uma campanha pública de vacinação.
Nos anos 80, o trabalho foi pela redemocratização do país. A ampla cobertura da tentativa de atentado no Riocentro, bem como sobre a bomba enviada à sede da OAB, no Rio de Janeiro, e o engajamento na campanha pelas Diretas Já, fez com que cada brasileiro conhecesse as razões da luta pela redemocratização e as abraçasse num movimento nacional praticamente uníssono.
Na década de 1990, a imprensa passou a denunciar os escândalos do governo Collor, apresentando, por meio de um amplo jornalismo investigativo, entrevistas e coberturas que geraram o pedido de impeachment do presidente da República, subscrito pela ABI e pela OAB.
No conhecido escândalo do mensalão, também a imprensa revelou fatos, por meio de reportagens e entrevistas, que depois viraram processo e resultaram em condenações no STF. A partir de 2014, as informações relevantes sobre os escândalos de corrupção, aliada ao trabalho desenvolvido pela Operação Lava Jato, auxiliaram a Justiça a desvendar uma complexa e ampla teia de corrupção na esfera pública, levando à prisão diversos governadores, ministros, deputados, senadores e até mesmo um ex-presidente e o então presidente da Câmara dos Deputados. As informações publicadas à sociedade, por intermédio dos meios de comunicação, fizeram com que todo o país fosse informado, em detalhes, do sofisticado esquema de propinas financiado por grandes empresas.
Um jornalismo independente, combativo e imparcial é garantia de proteção à cidadania e de preservação de valores essenciais para o convívio democrático de uma nação. Há um direito de informação da sociedade e essa informação, por meio da imprensa, deve ser completa, livre e imparcial. A previsão constante do inciso XIV do artigo 5.o da Constituição consagra o trabalho da imprensa e o acesso à informação como um direito de todos, resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional. Ou seja, ser informado é, antes de tudo, um direito do cidadão. Há, portanto, um dever da imprensa de informar e informar bem, com ética, responsabilidade e amplitude.
Em 2016, o então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cláudio Lamachia, subiu à tribuna do TRF da 1.a Região para defender a atuação do jornalista Murilo Ramos, da revista Época, alvo de decisão de primeiro grau que determinava o fornecimento de seu celular para identificação de fonte que havia passado informações para matéria tratando de dados do Coaf sobre brasileiros que mantinham contas no HSBC, na Suíça. O habeas corpus foi concedido, liberando-se o jornalista da quebra de sigilo telefônico.
Governos sul-americanos que investiram pesadamente contra a imprensa, como os casos de Hugo Chávez e Alberto Fujimori, logo se tornaram regimes de força, com esvaziamento da democracia. A imprensa livre e independente é um dos pilares da democracia e o direito de informação, que é direcionado ao povo, não pode receber nem ameaças nem censura.
O tema da liberdade de imprensa retornou ao centro dos debates, mais recentemente, em razão da denúncia penal feita por um dos representantes do Ministério Público Federal, em razão do hackeamento de celulares de autoridades do Judiciário e do Ministério Público, atuantes na Lava Jato. Naturalmente, a violação do sigilo dessas comunicações revela-se fato gravíssimo e está tipificado como crime na legislação penal brasileira. Aliás, o sigilo das comunicações é, também, uma das garantias fundamentais asseguradas ao cidadão.
Mas é preciso muita cautela quando se tenta incriminar a atividade da imprensa, porque isso não apenas contraria a Constituição Federal, mas também soa como uma séria ameaça ao direito de informação e promove um solavanco na democracia, devido à ameaça de censura e de restrições à imprensa livre. Ações penais intimidam, causam receios, especialmente se manejadas sem maiores cautelas. Ao envolver publicações jornalísticas, focando no autor de reportagens, podem prejudicar a produção de matérias de interesse geral, amparadas pelo direito de informação.
Recorde-se o que ocorreu em 2016, quando jornalistas da Gazeta do Povo passaram a responder dezenas de ações promovidas por juízes e promotores, por causa de reportagem a respeito de seus vencimentos, tendo de percorrer várias comarcas do estado para participar de audiências. Na ocasião, a ministra Rosa Weber, do STF, deferiu pedido de suspensão das demandas, assinalando: “Em nada contribui para a dinâmica de uma sociedade democrática reduzir o papel social da imprensa a um asséptico aspecto informativo pretensamente neutro e imparcial, ceifando-lhe as notas essenciais da opinião e da crítica. Não se compatibiliza com o regime constitucional das liberdades, nessa ordem de ideias, a interdição do uso de expressões negativas ao autor de manifestação opinativa que pretenda expressar desaprovação pessoal por determinado fato, situação ou ocorrência”.
Não se está a dizer que a invasão da privacidade, provocada pela ação clandestina que acessou comunicações protegidas pelo sigilo das comunicações, não deva ser punida. Mas isso não deve ir além para atingir o direito de informação plena, proporcionada pelo jornalismo investigativo, uma vez que aí, além do desrespeito à Constituição, em última análise, é o direito do cidadão à informação que fica prejudicado.
Necessário, pois, reafirmar que a liberdade de imprensa, a garantia do sigilo da fonte, a inexistência de censura e a não incriminação de jornalistas pelas matérias que publicam mostram-se como garantias essenciais para a preservação do regime democrático. Nesse sentido, a OAB, historicamente, tem lutado, e assim continuará a fazê-lo.
Cássio Lisandro Telles é presidente da OAB Paraná.