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Liberdade para pensar além da bandeira

O humorista Danilo Gentili. Foto: Divulgação (Foto: )

Manter a coerência intelectual sem cair em preferências ideológicas é cada vez mais difícil. Sem perceber, a estrutura de pensamento do sujeito está completamente condicionada por um círculo extremamente vicioso. Não defende a verdade, mas a oportunidade e conveniência de uma causa. Houve, nos últimos anos, um acirramento do “eles contra nós”, que, sorrateira mas eficazmente, foi aprisionando a consciência individual. Ao invés de autênticos intelectuais, proliferou-se a figura do “intelectual orgânico”. São os porta-vozes de uma bandeira. Apregoam o livre pensamento, mas estão absolutamente dependentes e à serviço da ideologia do Partido (instância divina infalível). Recuam se fugirem do eixo de defesa doutrinal-partidária. Vemos isso nos malabarismos conceituais que fazem alguns “intelectuais” na defesa de bandeiras que são insustentáveis à razão. Faz parte da “guerra de posições” identificada por Gramsci.

Compreender o caráter não absoluto do direito das pessoas a proceder segundo as convicções próprias é muito necessário para a convivência pacífica e tolerante na sociedade

No Recife, não faz muito, foi levantada uma polêmica sobre a legalidade de uma peça de teatro apresentar a Jesus como um transformista, invocando como fundamento a liberdade de expressão prevista no texto constitucional, ao passo que parecia ferir o sentimento religioso, também assegurado pela Carta maior.

Há, grosso modo, três linhas de pensamento neste sentido. Os que advogam por uma absoluta liberdade de expressão isenta de qualquer sanção prévia ou posterior; os que defendem que a liberdade de expressão deverá prevalecer no caso em tela, mas sem prejuízo à sanções cabíveis em caso de ofensa à outros direitos; e os que são da teoria de que, quando no uso da liberdade de expressão se opta pelo mal (racismo/preconceito, por exemplo), é certo que se atua livremente, mas é certo também que então a liberdade se encaminha – mais ou menos depressa – para a sua autoliquidação, pois irá ficando cada vez mais condicionada – e, a partir de certo momento, escravizada – pela correspondente ligação à ofensa ao um determinado bem jurídico tutelado.

Esse limite da liberdade não seria um obstáculo, mas uma condição para que a liberdade exista realmente e para que possa desenvolver-se. Compreender o caráter não absoluto do direito das pessoas a proceder segundo as convicções próprias é muito necessário para a convivência pacífica e tolerante na sociedade.

No dia 10 de abril, o humorista Danilo Gentili foi condenado a 6 meses e 28 dias de detenção em regime semiaberto por ofender, segundo a acusação, à deputada Maria do Rosário. Entendo que se o humorista ofendeu realmente à deputada, deverá seguramente estar sujeito às sanções que daí possam advir. Não estou discutindo a sentença em si, se foi teratológica, se foi justa etc., porém a possibilidade de responsabilização civil e criminal no caso concreto.

Mas o que penso cá com os meus botões: o silêncio sepulcral da classe artística e do beautiful people é resultado de uma assimilação e correspondência gnosiológica (mente-realidade) ou apenas um ostracismo ao humorista que não faz parte do establishment? Será que se a condenação fosse de Gregório Duvivier, o silêncio imperaria ou teríamos hashtag com #64nuncamais, #diganaoacensura?

Há um provérbio, de autoria duvidosa, mas com aplicação certeira: “Aos amigos tudo; aos inimigos os rigores da lei”. A seletividade é sempre fruto de uma visão recortada da realidade, uma alienação de consciência e pouco apreço pela verdade. Prefiro um outro ditado: “Amigo de Platão, mas mais amigo da verdade”. É preciso defender a liberdade e a independência para pensar para além de certas bandeiras.

Davi Melo, advogado, formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco(UFPE), mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUCSP).

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