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Universidade Federal do Paraná, na Praça Santos Andrade, em Curitiba. Imagem ilustrativa.
Universidade Federal do Paraná, na Praça Santos Andrade, em Curitiba. Imagem ilustrativa.| Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo

As universidades são instituições centrais para o aperfeiçoamento democrático. A história mostra que não há democracia sem instituições de ensino livres. Mais que isso: não há democracia se aos membros da comunidade acadêmica não for assegurada efetiva liberdade para a exposição de pensamentos, ideias e críticas. Não à toa, as universidades são os primeiros alvos de censura em períodos ditatoriais e, em projetos autocráticos, o seu enfraquecimento (envolvendo ações que se estendem aos membros da comunidade acadêmica) integra uma estratégia política de dominação. É bem por isso que, nas democracias formais, as investidas contra as universidades – e contra seus professores/pesquisadores – mediante a utilização das instâncias de poder sinalizam para o temerário contexto de erosão democrática. Aqui, a vigilância daqueles comprometidos com os valores democráticos e republicamos reclama maior sensibilidade. Um fato é certo: a liberdade tem uma relação estrutural com a democracia.

A notícia é triste, mas, para aqueles que ainda não perceberam, não é de hoje que o Brasil é vítima de ofensivas contra as liberdades; contra as instituições; contra a imprensa; contra as vozes capazes de dar eco a necessárias críticas e reflexões. Diversos são os episódios a ilustrar essa conjuntura. Neste momento, escrevo para chamar a atenção para um único episódio – e aproveito a ocasião para, desde logo, registrar minha solidariedade e admiração pelo professor Conrado Hübner Mendes, da Universidade de São Paulo (USP).

Na última semana, diversos veículos de comunicação noticiaram que o procurador-geral da República, Augusto Aras, protocolou representação contra o professor Conrado Hübner Mendes junto à Universidade de São Paulo. O documento, dirigido ao reitor da universidade, afirma que as manifestações do professor – tanto em seu perfil no Twitter quanto em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo – ultrapassaram a crítica ácida ao atacar a honra do procurador-geral. Justifica a representação perante a USP na medida em que Hübner sempre está a se identificar como professor de Direito da USP; por isso, pede que a representação seja submetida à Comissão de Ética da mencionada universidade para fins de apuração de suas condutas. Na representação, Aras questiona, por exemplo, referências à sua pessoa por meio das expressões “Poste-Geral da República” e “servo do presidente”; e, ainda, pela opinião de que Aras estaria se omitindo na apuração da responsabilidade do governo federal em relação à desastrosa condução da crise pandêmica.

Não é preciso dizer que a representação foi objeto de enorme perplexidade no meio jurídico e jornalístico. Arrisco indicar as principais razões do estranhamento: 1. há consenso no sentido de que a liberdade de expressão exerce posição de preferência no sistema constitucional brasileiro (o que a doutrina norte-americana costuma denominar como “preferred position”); 2. em atenção ao interesse público, ainda que as manifestações sejam contundentes, ácidas e incômodas, tem-se que figuras públicas devem estar sob maior escrutínio da crítica; 3. se é certo que a educação é peça-chave para o desenvolvimento democrático, não menos certo é o fato de que as universidades – e, por consequência, os membros da comunidade acadêmica – devem ter liberdade para expor ideias e fomentar o debate crítico; e 4. como bem alertou o professor Ricardo Marcelo, reitor da Universidade Federal do Paraná, causa ainda mais estranhamento o fato de a tentativa de cerceamento da liberdade partir da maior autoridade do Ministério Público Federal, “instituição que mais deveria custodiar a liberdade”.

As razões acima revelam o delicado momento pelo qual atravessa a democracia brasileira. Vale lembrar que o professor Conrado Hübner Mendes, cuja trajetória acadêmica é irretocável, exerce relevante papel social por meio de suas ativas exposições e manifestações. Não por acaso, conta com quase 60 mil seguidores no Twitter. E sabem o que faz das suas manifestações ainda mais interessantes e objeto de curiosidade? O excesso de legitimidade na fala de alguém que, para além de ter um currículo exemplar (o qual mostra domínio nos campos do Direito e da Ciência Política), escolheu o magistério e a pesquisa como carreira.

Não há amarras para a livre exposição do pensamento; não há eventuais interesses institucionais ou outros que possam permear – e aí deslegitimar – a crítica feita. Fiquemos atentos em quem está na mira. Fiquemos atentos às mensagens que vêm no pacote das investidas contra a academia e contra os principais críticos daqueles que flertam – ou sentem-se confortáveis – com projetos autoritários. Afinal, se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir, como lembra George Orwell.

Por fim, como disse o professor Conrado Hübner Mendes no Twitter, “a universidade pública, patrimônio democrático que é, está sob ataque por muitas frentes. Quando acabar a liberdade ali, acabou!”

Ana Carolina de Camargo Clève, advogada, professora de Direito Constitucional e Eleitoral, mestre em Ciência Política, é presidente do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade). 

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