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Há alguns dias, num Roda Viva especial na TV Cultura em que influenciadores digitais entrevistaram o meu amigo Leandro Karnal e eu, um dos entrevistadores me perguntou se eu acreditava que, com o avanço da inteligência artificial e das ferramentas de realidade virtual, chegaríamos a um dia em que o sexo com pessoas reais deixaria de existir. Muitos acreditam que sim. Eu, como disse no programa, acredito que o sexo com pessoas reais terá acabado antes. Você deve estar se perguntando a razão de eu achar isso. Explico: o álcool gel acabará com o sexo em nome de uma vida mais segura.

Entre as várias formas de distopias, uma das que mais me fascina é a distopia da limpeza. Uma distopia é algo que nasce de um projeto por um mundo ideal que sempre dá errado. A modernidade é obcecada, desde a “Nova Atlântida”, de Francis Bacon (1561-1626), pela ideia de um mundo perfeito, construído a partir de nossa capacidade técnica, cultural e política.

Os idiotas do bem são aqueles que não entenderam ainda que utópicos são os grandes destruidores modernos da vida. Pois bem, um idiota do bem não entende que “limpinhas e limpinhos” não gostam de sexo porque sexo é sujo.

Filosofemos um pouco mais sobre esse horror ao “imundo”. Grande parte da filosofia e das religiões sempre temeu as paixões, vendo nelas uma forma de impureza mesmo ontológica, isto é, os “pathos”, como diziam os gregos para se referirem às paixões, eram para gente como Platão formas negativas de destruição do ser (por isso, um mal ontológico, porque ontologia é a parte da filosofia que se dedica ao ser).

Limpar o mundo das paixões, das sujeiras e ambivalências, é o projeto moderno por excelência, mesmo que carregue em si laivos românticos aqui e ali. Portanto, o álcool gel é o símbolo de uma “vida platônica” vendida a R$ 10 nas farmácias. Temos medo de tudo que desordena a vida, e com razão, uma vez que a vida é frágil, breve, bruta e efêmera. A beleza é sempre a primeira vítima em toda forma de violência.

Voltando ao programa. Minha resposta gerou uma série de mensagens em que mulheres afirmavam ser “sujinhas” e não “limpinhas”, portanto, não estariam no grupo daquelas e daqueles que temem a sujeira do amor.

Para além da “brincadeira” envolvida no acontecimento, a mania de higiene se espalha por toda parte. Alimentação sem sangue, sexo sem secreções, beijos sem saliva, amor sem ciúmes, almas sem inveja, sociedades sem ressentidos, casais sem inseguranças, enfim, um mundo que deixaria a Branca de Neve atordoada.

Nelson Rodrigues, que deveria ser mais estudado em nossas escolas, disse tudo sobre o desejo: “O desejo pinga”. É exatamente essa gota, esse resto do amor, que tememos.

No fundo, mesmo os idiotas do bem e da liberação sexual (essa grande mentira recente) temem essa mancha na cama e na alma que o amor deixa, às vezes de forma indelével.

Não tenho nenhuma dúvida que é o sucesso mesmo no controle da vida, que nosso mundo contemporâneo produziu, que irá esmagar o desejo, porque, de novo, segundo nosso filósofo de “A Vida como Ela É”: “O desejo é triste”, e ninguém suporta a tristeza quando temos o direito à felicidade.

A tristeza do desejo está no fato mesmo dele ser infinito e intratável, a menos que morra de alguma forma. E o mundo nunca foi tão covarde quanto em nossos dias. O truque da liberação sexual é a eliminação do desejo em si como garantia de uma liberdade com segurança.

A desumanização, que muitos temem vir trazida pelas mãos das máquinas inteligentes, é, ela mesma, a causa do sucesso das máquinas em nossas vidas: queremos desaparecer para garantir um mundo melhor.

Suspeito que o desaparecimento do humano, que muitos temem ser uma possibilidade no futuro, é ele mesmo nosso projeto mais profundo. Não são as máquinas que nos levarão à irrelevância, somos nós mesmos que chegamos à conclusão que atrapalhamos o projeto de felicidade moderno. O Sapiens era uma espécie muito triste.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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