Lembro-me da minha primeira leitura de A Metamorfose, de Franz Kafka. Esta obra foi, como pude compreender mais tarde, o primeiro clássico da literatura com que tive contato e que exerceu sobre mim seu poder, isto é, aguçou minha imaginação ao passo que a realidade se apresentava com maior amplitude e clareza. A boa literatura transforma, mesmo não sendo este seu objetivo – se é que há algum.
Na tentativa de tomar posse do poder transformador da literatura, as ideologias, além de colecionarem tentativas falhas em gerar boa literatura, também deixam seus rastros de destruição da linguagem. Vejamos, por exemplo, a literatura produzida pela ideologia atual da autossuficiência: A Sutil Arte De Ligar O F*da-Se e Seja Foda!. Dois livros aparentemente inofensivos, mas que estão sendo capazes de tornar termos antes obscenos em descrição qualitativa de pessoa ou objeto. Mas a corrupção das palavras não é o único vestígio destrutivo das ideologias.
Em Ortodoxia, G. K. Chesterton descreve algumas das consequências práticas das ideologias e, inevitavelmente, também suas semelhanças com a psicologia de um louco. Além de negligenciar a imaginação e seu papel na vida, ambos nutrem uma razão infundada e, por isso mesmo, mortal para a compreensão do mundo. O louco e o ideólogo, vítimas de sua racionalidade delirante, não levam em conta a complexidade natural da realidade. Suas visões podem ser comparadas com um anel por sua aparente harmonia, mas com estreito espaço para o entendimento.
Essa aparente harmonia não nos permite acusá-los de “não racionais”; pelo contrário, é por causa da razão (que selecionou e harmonizou seus delírios) que ideólogos e loucos chegam a tal estado. Trata-se de uma questão de amplitude e clareza. Eles precisam de uma compreensão melhor do mundo e devem entender que existem outras possibilidades tão plausíveis quanto seus delírios. Ironicamente, a literatura – que em mãos de loucos e/ou ideólogos é atacada – é que pode proporcionar-lhes “espelhos, exemplos e fontes de retidão e conduta nobre”, atingindo a imaginação e moldando a moral, como faziam os gregos com sua mitologia.
“Os grandes pensamentos originam-se mais de um grande sentimento do que de uma grande inteligência”, afirmou Vieltchâninov, personagem de O Eterno Marido, obra produzida por Dostoievski após sua volta da Sibéria. Esta afirmação foi, e continua sendo nos dias atuais, um ataque ao estreito racionalismo. Dostoievski, assim como outros escritores, denunciou ideologias de escasso imaginário, infundada razão e fé cega no progresso. Isso apenas reforça a ironia anterior: a literatura é cura e inimiga dos loucos.
Em resumo, é melhor ser transformado em um inseto e sofrer a quase completa indiferença da família, como descreveu Kafka, do que acreditar que será uma pessoa melhor praticando uma autossuficiência indiscriminada, que se utiliza das realizações do próximo como parte desse narcisismo descrito pelos livros da atualidade. Sofra como Gregor Samsa, mas não morra como um louco.
Pedro Miquelasso é colunista do Culture Pub.
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