“Diz o título desse livro aqui, por favor”, solicitei ao abrir a caixa de papelão que havia sido deixada à minha porta com meu nome na etiqueta, ainda incrédulo.
“Um Nazista em Copacabana.”
“Ah! Não é possível!”
O pedido e a confirmação do pagamento haviam se concretizado havia dois dias. Meu ceticismo não quis dar o braço a torcer, mas ali estava minha encomenda feita na Amazon. “As livrarias já podem fechar”, decretei em um tom jocoso, mas com retoques de razão.
Eu lembrava de uma tarde de domingo em uma livraria de renome da minha cidade, munido de uma câmera para tirar fotos dos ambientes mais agradáveis da loja. Um deles, uma parede repleta de livros que se alongava do assoalho ao teto daquele imóvel, uma megastore de dois andares.
“Com licença, senhor. Você não pode tirar fotos da livraria”, informou um funcionário que chegou até mim quase que deslizando.
“Ora, e por quê?”
Robótico, respondeu: “São as regras daqui”.
Onde já se viu? Tive vontade de mandá-lo às favas. No entanto, o empregado, que mais parecia um personagem de The Big Bang Theory, só teve a infelicidade de ser o emissário da ordem intransigente da empresa que representava. Não foi a única vez em que eu me decepcionei naquele estabelecimento. Em outras oportunidades, ao procurar um determinado título, voltava de mãos vazias. As vezes em que eu encontrava o que estava procurando estavam se tornando raras, quase acidentes do destino. Retirei-me sem prolongar a conversa, mas passei a questionar o que levou tudo isso a ruir. Não faltam motivos.
Não haveria um fator negativo mais atual que a pandemia de Covid-19, que, somando-se aos outros percalços, levou livrarias a uma queda de mais de 90% das vendas. As dificuldades impostas pelo distanciamento social foram um duro golpe nas já combalidas redes de livrarias. A Livraria Saraiva, que já foi o pilar da venda de livros no Brasil, somente em novembro de 2020 fechou as portas de cinco filiais, levando a um total de 36 no ano passado. Sua concorrente Livraria Cultura encerrou as atividades de três filiais neste início de 2021.
É ineficaz alegar que a pandemia recaiu sobre o mercado editorial como um maremoto inesperado, varrendo uma ilha paradisíaca e tornando o litoral uma fachada de lama num piscar de olhos, para espanto de todos. As grandes livrarias e editoras já passavam por uma tempestade de tirar o sono, sobrevivendo ancoradas ao nome, mas gradativamente perdendo as forças por conta de sua imprevidência financeira de longa data.
Procurando explicações para o nítido sucateamento das lojas de livros, cheguei a uma informação que remonta ao ano de 2016. Neste ano, duas grandes redes de livrarias, Saraiva e Cultura, responsáveis por quase 35% das vendas de livros em território nacional, vivenciaram graves crises em seus negócios. A primeira carrega uma dívida milionária que a levou à recuperação judicial. A segunda, não menos atribulada, realizou a aquisição vultosa da Fnac, levando a um endividamento de R$ 285 milhões e, consequentemente, também entrou em recuperação judicial como penalidade por seus passos maiores que a perna.
Trocando em miúdos e saindo dessa numerologia sonolenta, as duas empresas responsáveis por mais de um terço do cenário comercial estão funcionando no vermelho, sem os mesmos recursos significativos de que dispunham em anos mais prósperos. As livrarias, que outrora eram faróis de cultura e conhecimento, hoje nem sequer conseguem quitar o custo operacional, o que se traduz em um perceptível esvaziamento material: número reduzido de funcionários, iluminação deficiente e menos opções além dos best-sellers do mês.
O episódio recente em que meu livro chegou após um par de dias não é o primeiro. Sou consumidor assíduo de lojas virtuais e, desde que fiz a primeira compra na Amazon, passei a adquirir toda minha coleção de literatura técnica pelo site. Além disso, percebo que comprar na loja virtual é um hábito de quase todo o meu círculo de contatos. Não querendo me entregar a um reducionismo de boutique, mas essa percepção facilmente comprova que o que pulverizou as livrarias tradicionais não foi somente seu descalabro nas finanças, como também o seu modelo de negócio ultrapassado.
Abraçados à premissa de que o livro físico não irá desaparecer – assim como eu também acredito –, não percebem que, ao menos, o espaço dos volumes impressos diminuiu em benefício das suas versões digitais. É bem verdade que a impessoalidade de uma leitura numa tela de cristal seja um fator que endossa a teoria de sobrevivência do livro tal como ele é; todavia, a intransigente resistência do mercado editorial à mídia virtual não possui lastro na realidade. As rápidas transformações tecnológicas e comportamentais decorrentes da digitalização alavancaram a oferta por conteúdos fora da esfera cultural.
Constatação óbvia: caminhar pelos corredores de marfim e não encontrar mais a profusão de volumes que disputavam espaço nas gôndolas é comum. O mais comum é encontrar vãos entre um livro e outro, exibindo banguelas por todos os cantos. A mentalidade analógica dos grandes grupos de livrarias não deixou somente lacunas nas prateleiras, como uma lacuna maior ainda no mercado.
No meio disso tudo, o faro da varejista americana, identificando os erros cometidos pelas concorrentes e propondo soluções por cima, foi salutar. Ainda contou com o engessamento do setor, com seus empilháveis conflitos e disputas de interesses entre grupos de autores, distribuidores, editoras, gráficas etc. – uma verdadeira casa da Mãe Joana. Aproveitando o espaço deixado, nada mais assertivo na estratégia da Amazon em negociar diretamente com as editoras, realizando a compra de altas quantidades de livros, podendo, assim, praticar preços menores. Os descontos aplicados premiam o consumidor, que agora pode ter acesso ao mesmo produto a um custo menor. Tem algo de errado nisso?
O pensamento antirresultado que se instalou no Brasil vê algo muito errado. “O brasileiro lê pouco.” “O governo não ajuda.” “É preciso dar apoio à cultura.” Bordões empoeirados, mas ainda frequentes em uma classe que mais se assemelha a um clubinho fechado, esbanjando alergia ao mercado e apego a soluções paternalistas. Braços cruzados e birra. Para piorar, a aversão à concorrência chegou a entidades como editoras e outros agentes do mercado, como é o caso do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), que teve a desfaçatez em sugerir uma “lei de preço único”. Essa lei não seria apregoada para proibir lojas de venderem os volumes a preços exorbitantes. Na verdade, ela inibiria que o comércio eletrônico aplicasse descontos. Isso mesmo. A Snel tentou judicializar a questão, propondo que os consumidores não tivessem acesso a livros mais... baratos.
Claramente, essa lei teria como corolário o desinteresse do público pela literatura. Alguém precisa avisar a seus idealizadores que nenhum ato governamental possui o condão de atrair a atenção do público aos livros, ainda mais se estes forem vendidos aos altos valores da era pregressa à internet. A ideia de jerico só serviria para espantar os consumidores de livros.
Somado a isso, não dói ressaltar que a Amazon usou seu aparato tecnológico para investir em formas de detectar preferências e hábitos pessoais de cada consumidor. Em um período em que o ambiente de negócio se caracteriza por demandas de nicho, rastrear as predileções do seu consumidor colocou a empresa a léguas das concorrentes. Esse artifício é deveras astuto a ponto de permitir à companhia vender sem a necessidade de exibir todo o seu catálogo, o que, se por um lado dificulta a diversidade, por outro amplia o alcance de livros e escritores desconhecidos que não possuíam qualquer forma de descobrir seu público-alvo. A varejista virtual percebeu que é melhor vender poucos exemplares de um milhar de títulos que vender milhares de exemplares de uma única obra.
Voltando à desculpa da pandemia, talvez todos esses agentes envolvidos na publicação de um livro tivessem a agradecer ao e-commerce pela sobrevida de seu setor. Com o susto causado pela disseminação da doença, as livrarias se viram obrigadas a fechar. Foi nesse momento que as editoras passaram a depender do mercado virtual para escoar seus produtos. Atualmente, o comércio eletrônico é responsável por 70% das vendas, o que, de longe em longe, é estatística suficiente para dar um ponto final à insurgência boba das ditas entidades fomentadoras da cultura tendo a Snel como exemplo, atribuindo a dissolução das editoras e livrarias a supostas “atitudes predatórias” das lojas virtuais. Tanto não são predatórias que se tornaram as principais fomentadoras da cultura escrita em tempos de isolamento social.
Por fim, devo esclarecer que, a despeito de todos os fatores que jogam contra a longevidade das livrarias, não torço para seu fim. Listando todos os obstáculos, julgo que a continuidade do setor deverá contar exclusivamente com a capacidade de gerar uma experiência diferente ao cliente. Por mais recursos que as gigantes da internet possuem, é difícil vencer o ambiente acolhedor de uma livraria que tornava a busca por determinado exemplar apenas um pretexto para passar uns minutos debaixo daquela luz âmbar, folhear alguns livros, sentir o frescor do café e a tinta das capas formando uma disforia de aromas que curava a alma. Um passeio de alguns instantes foi uma experiência inspiradora e revigorante. Que os especialistas em marketing usem essa carta na manga em vez de se preocuparem com pessoas fotografando lá dentro. Considerando a cadeia de acontecimentos e indícios, talvez aquele intruso estivesse a documentar às gerações futuras o que um dia foi uma livraria, antes de sua extinção.
Lucas Lôbo é bacharel em Engenharia de Telecomunicações.
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