O ano de 2020 tem sido deletério para as finanças dos estados brasileiros, uma vez que, não bastassem os antigos problemas de desequilíbrio fiscal, a arrecadação de impostos foi impactada pela pandemia do coronavírus. Mas agora há uma esperança de melhora, representada por uma nova fonte de recursos: as loterias.
No dia 30 de setembro, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 492 e 493, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.986, decidindo que os artigos 1.º e 32 do Decreto-Lei 204/1967 não foram recepcionados pela Constituição Federal. Aquela norma, editada no período do regime militar, dava à União federal exclusividade para operar loterias, proibindo sua exploração pelos estados. Mas, ao mesmo tempo, o decreto-lei garantia aos estados que, àquele momento, exerciam atividades lotéricas o direito de manterem suas operações, limitadas à “mesma quantidade de bilhetes” comercializada em 1967.
Ou seja, havia uma verdadeira afronta ao princípio da isonomia entre os entes federativos, já que alguns estados brasileiros continuaram explorando as loterias – e auferindo receitas decorrentes de tal atividade –, enquanto outros foram proibidos. Mas mesmo aqueles estados que, teoricamente, poderiam continuar com suas loterias, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, passaram a ser constantemente questionados e ameaçados. Em 2016, por exemplo, a então Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda instaurou processos administrativos que resultaram na determinação de que as atividades lotéricas pelos estados fossem interrompidas. Foram esses processos administrativos, somados a uma tentativa da União federal de anular normas editadas pelo Mato Grosso acerca da loteria local, que ensejaram o ajuizamento das ADPFs e da Adin no STF.
No julgamento das ações, o relator, ministro Gilmar Mendes, elaborou um voto que, de forma bastante didática, faz um apanhado histórico da regulação das atividades lotéricas no país e expõe as razões pelas quais as loterias têm natureza jurídica de serviço público, concluindo que a exclusividade concedida pelo Decreto-Lei 204/67 não coaduna com o texto da Constituição Federal de 1988.
De fato, a Carta Magna, ao versar sobre o tema, instituiu a competência da União federal para legislar sobre “sistemas de consórcios e sorteios”, o que inclui as loterias, mas não menciona a competência para prestar o serviço público lotérico. Muito pelo contrário, a Constituição, no artigo 195, elenca, dentre as fontes de custeio da seguridade social pela União federal, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, o concurso de prognósticos.
Por óbvio, os estados-membros não podem explorar loterias da forma como bem entenderem, pois, com a competência privativa da União federal para legislar sobre a matéria, aqueles devem observar os limites estabelecidos pelas normas federais. Os estados não podem, então, sob a égide da prestação do serviço público de loterias, instalar bingos ou cassinos. Nesse ponto, o ministro Gilmar Mendes destacou que o entendimento de que os estados-membros podem explorar loterias não conflita com o enunciado da Súmula Vinculante 2 do STF, a qual considera inconstitucional lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias. Não há dúvidas acerca do caráter privativo da competência da União para legislar sobre a matéria. Mas inexiste vedação constitucional à exploração pelos estados das loterias, desde que observem os limites e sigam a legislação federal.
Se, juridicamente, o entendimento do STF é o mais acertado, é certo que, do ponto de vista econômico, a exploração das loterias pelos estados faz mais sentido que sua concentração na esfera federal. Loterias bem-sucedidas são aquelas que consideram os desejos, as expectativas e a cultura dos apostadores de cada região. E esses fatores são mais bem observados quando a administração do jogo lotérico é feita no próprio local de sua comercialização.
Ademais, as loterias devem verter recursos para finalidades sociais. Se os valores arrecadados na exploração lotérica abastecem projetos locais e a população pode ver o resultado dessa alocação, a loteria passa a ter um viés comunitário, formando uma equação em que ganha a população e ganha o governo estadual. Ninguém melhor que os próprios estados para definirem onde devem ser aplicados os recursos arrecadados pelas loterias locais, já que esses conhecem melhor suas necessidades: para alguns, educação; para outros, segurança pública ou, ainda, saúde. O governo de Minas Gerais, por exemplo, no primeiro semestre de 2020, alocou mais de R$ 30 milhões nas ações de enfrentamento à pandemia do coronavírus.
Ora, num país com uma elevadíssima carga tributária, em que os estados vêm clamando por um pedaço maior da arrecadação, nada mais justo que conceder a eles a possibilidade de obter de seus cidadãos o pagamento de um “imposto voluntário”, o que, na essência, é a dinâmica da loteria: o indivíduo opta por comprar um bilhete, na esperança de ser premiado, mas sabendo que sua ação dará dinheiro ao governo para ajudar a comunidade local.
Marcello A. L. Vieira de Mello é advogado, mestre em Direito Empresarial e professor do curso de pós-graduação do Centro de Estudos em Direito e Negócios (Cedin). Kip Peterson é capitão da Marinha Mercante dos Estados Unidos, fundador do Thorsborg Institute e analista nomeado pelo Banco Mundial/FMI com especialidade em loterias e jogos.
Deixe sua opinião