Uma forte polêmica em torno da relação entre governo e estatais instalou-se no país. Parte da imprensa e do mercado falou em “impactos desastrosos” da interferência do governo na Petrobras, determinando o diferimento da distribuição dos dividendos da empresa. Isso catalisou uma polêmica iniciada com a pretensão do governo de influir na indicação de conselheiros e diretores da Vale do Rio Doce, empresa privada “blue chip” na bolsa brasileira B3. Surge aí uma questão sobre qual deve ser a postura do governo na sua relação com as empresas estatais e com empresas privadas relevantes para a economia brasileira.
Um ponto inicial a ser colocado é que o art. 173 da Constituição Federal determina que a atuação do governo na atividade econômica deve acontecer por exceção, exigindo imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo e autorização legal. A ideia é que o mercado mostra-se como uma área em que os agentes econômicos privados devem predominar exercendo a sua autonomia e perseguindo o seu auto-interesse, o que legitima o auferimento de lucros, como prêmio de sua eficiência.
Uma vez competindo no mercado, o Estado deve fazê-lo em pé de igualdade com os particulares, o que os coloca no mesmo regime jurídico dos agentes econômicos privados. No entanto, a sua função social, derivada do imperativo de segurança nacional e/ou do relevante interesse coletivo, deve ser um dos guias da sua gestão. Quer dizer, o ambiente e o regime jurídico da empresa são privados, mas o seu objeto é público.
Disso resulta que, ao lado da sua função social, a empresa estatal oriente-se também pelo princípio da eficiência, que é tanto um imperativo constitucional para a administração pública direta e indireta como um critério econômico que rege o agir empresarial. A sobrevivência e o êxito de uma empresa é o resultado desse critério. De igual modo, o poder público deve maximizar os seus meios e promover o incremento social da riqueza.
Uma empresa é uma organização que congrega capital e trabalho, visando ao lucro. Ao adotarem forma de direito privado e submeterem ao princípio da eficiência, as empresas estatais não podem abdicar do retorno do seu capital, deixando de gerar lucro. Aliás, esse resultado positivo é índice de sua higidez, assinalando o seu êxito.
Todavia, o sucesso de uma estatal não se resume ao lucro. Está também na produção de utilidade que justifica a sua criação. A empresa de natureza pública legitima-se pela entrega de uma fruição que deve atender a necessidades coletivas. Em outras palavras, a empresa tem de produzir combustível, prestar serviços financeiros, fornecer energia elétrica, realizar serviços postais etc. Além disso, tem de fazê-lo buscando universalizar o acesso ao bem, entregá-lo a preços francamente competitivos, de modo diversificado e com qualidade.
De igual modo, no que diz respeito à seleção dos meios, ou seja, a organização da produção, a empresa estatal deve atuar respeitando a sua natureza pública, o que, na medida da compatibilidade com a sua natureza privada, impõe-lhe observar ainda os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.
Esse rol de exigências para a boa atuação de uma empresa pública reforça a excepcionalidade de sua criação. Não é algo singelo pautar-se por todos esses critérios e princípios. O Estado quando cria uma empresa pública deve fazê-lo por acreditar que os agentes econômicos privados por si só, ainda que bem regulados, não entregarão a utilidade de interesse público, de modo a satisfazer o interesse coletivo plenamente.
Uma última questão a ser abordada é a postura do Estado diante de empresas privadas relevantes para a economia brasileira. Aqui se tem algo diferente. Se se trata de uma genuinamente empresa privada o que vale é o princípio da autonomia e da liberdade de iniciativa, que é compatível com a coordenação da atividade econômica pelo Estado por meio da regulação. Todavia, não se pode falar em intervenção e interferência. Cabe-lhe respeitar as escolhas dos agentes privados como impulso inicial das atividades econômicas. O poder público não pode inibir a dinâmica espontânea do mercado.
Dessa forma, o governo eleito, de um lado, no que diz respeito às empresas estatais, deve ordenar a sua gestão para que haja uma resultante entre a sua eficiência e o interesse público que justifique a sua existência, ocupando aí o lucro a função de sinalizar a saúde da empresa, como agente econômico que está no mercado. A lucratividade de uma estatal só pode ser considerada excessiva se a utilidade pública que justifica a sua existência não estiver sendo produzida de modo a satisfazer o interesse coletivo. Assim, para censurar o excesso de lucratividade de uma empresa estatal e a distribuição de seus resultados, o governante tem de convencer a opinião pública que o fim coletivo não foi atingido. De outro lado, uma empresa particular deve ter sua autonomia respeitada pelo governo eleito, cabendo-lhe coordenar as atividades setoriais, valendo-se da regulação.
Othon de Azevedo Lopes, advogado, doutor em Direito e Filosofia do Estado, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e sócio do Machado Gobbo Advogados.
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