Foi meu irmão que salvou minha vida. “Vá para um hospital agora. Você está tendo um AVC”, insistiu ele, do outro lado da linha.
Eu acabara de chegar a Hong Kong para organizar uma conferência importante e fiquei tentada a ignorar esse diagnóstico de irmão mais velho, feito por telefone (mesmo que Jeff seja, de fato, médico).
Eu tinha só 49 anos de idade, era saudável e não sofria com nenhum daqueles probleminhas, tipo pressão alta, que poderiam indicar um AVC.
Imagino que Luke Perry tenha pensado a mesma coisa quando os paramédicos o examinaram. AVC? Vocês estão brincando, só gente velha tem essas coisas. O ator, famoso por seu papel em Barrados no Baile, tinha só 52 anos ao morrer, em consequência de um acidente vascular cerebral, no dia 4 de março.
Imaginei que o que estava acontecendo comigo fosse outra daquelas minhas enxaquecas, apenas um pouco mais estranha por causa do leve formigamento no canto da boca e na mão, além de uma disfasia temporária que fez com que eu enrolasse as palavras.
Naquela manhã, eu estava trabalhando em uma história sobre outra crise de gestão no Yahoo. “Mas que trapalhada fenomenal”, dissera eu em voz alta, só que saiu um “Grrxxxx gghrtt jjjtrws”. Depois, quando fui comer um morango, a fruta escorregou pelo canto da boca imóvel, deixando uma mancha primeiro na minha camisa e depois no carpete do hotel de luxo em que acabara de entrar.
Quando se trata de um AVC, o tempo é vital
Olhei para a nódoa – que, aliás, era de um vermelho bonito, brilhante – e, em vez de me preocupar com o lábio dormente, corri para pegar uma toalha e limpar a sujeira. A seguir, como eu sempre fizera até então quando tinha dor de garganta ou outro probleminha qualquer, mandei uma mensagem para Jeff descrevendo os sintomas.
Que, inclusive, já tinham praticamente sumido depois que terminei o banho e me dirigi ao restaurante para tomar o café da manhã. Por isso, quando Jeff ligou para dizer que eu estava tendo um AVC, acho que ri e disse: “Que médico ruim você é.”
Além disso, conseguira fazer com que Jerry Yang, do Yahoo, confirmasse presença na conferência, como também Jack Ma, do Alibaba, e Al Gore. Não tinha tempo.
Bom, essa parte era verdade. E porque ele é um médico excelente, insistiu, em um tom cada vez mais urgente, que eu fosse ao hospital naquele instante. Sim, porque, quando se trata de um AVC, o tempo é vital: é preciso fazer o sangue voltar a circular na região que não o esteja recebendo o mais rápido possível.
Para variar, então, ouvi seu conselho, ignorando a irmã caçula revoltada em mim, e peguei o carro para fazer uma ressonância magnética de emergência.
E lá estava na tela: a evidência de um ataque isquêmico transitório, também conhecido como mini-AVC. Como a mancha do morango, também era interessante de olhar, com seu brilho forte em neon, do coágulo amarelo berrante à corrente de sangue vermelho fluindo à volta dele, para irrigar meu cérebro multicolorido, tão cheio de ideias, mas que também era um pedaço de carne com problemas.
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E, pelo visto, deficiência era o que não faltava ali, incluindo um pequeno orifício no meu coração, por onde passou o coágulo, e também meu tipo sanguíneo, mais propenso a esse tipo de aglutinação. Esses dois fatores, aliados à falta de hidratação e movimentação durante o longo voo para Hong Kong, criaram o que o médico, que começou imediatamente o tratamento com anticoagulantes e outros remédios, chamou de “tacada perfeita”.
A brincadeira foi boa, mas o momento, não. São engraçadas as coisas de que a gente se lembra nos momentos mais críticos da vida – como a brancura extraordinária da máscara cirúrgica daquele profissional, que também me disse que, se não tivesse agido com rapidez, teria sido muito pior.
“Você poderia ter perdido a capacidade motora. Ou morrido”, disse ele, de algum lugar por trás da proteção.
Foi só então que chorei, e somente por causa dos meus filhos, na época com seis e nove anos. Meu pai morreu de repente, quando eu tinha cinco anos. Ele também teve um problema no cérebro, porém bem mais fatal: um aneurisma que estourou, sem aviso, em uma manhã ensolarada de inverno, há mais de 50 anos. Embora tenha resistido um tempinho, nunca mais foi o mesmo. Não estava mais ali e tivemos de seguir a vida sem ele.
E é por isso que a ideia da morte – e sua proximidade inexorável – sempre foi muito presente para mim. Desde que meu pai morreu, vivo como se não tivesse tempo para nada, ou muito pouco, fazendo escolhas como alguém que sabe que o dia de amanhã pode realmente ser o último.
Como muita gente, eu era superfã de Barrados no Baile quando estava no auge
E esse foi também o enfoque do famoso discurso que Steve Jobs, o fundador da Apple e visionário do setor da tecnologia, fez em 2005, na Universidade de Stanford: “Há 33 anos eu me olho no espelho toda manhã e me pergunto: ‘Se hoje fosse o último dia da minha vida, eu haveria de querer fazer o que estou prestes a fazer?’ E, sempre que a resposta fosse ‘não’ durante vários dias seguidos, eu sabia que tinha de mudar alguma coisa.”
A lembrança de que posso estar morta amanhã ou depois foi o mecanismo mais importante que desenvolvi para me ajudar a tomar grandes decisões na vida. Sim, porque praticamente tudo – todas as expectativas externas, todo o orgulho, todo o medo do constrangimento e do fracasso – perde a importância em face da morte, deixando só o que realmente conta. A lembrança de que vou morrer é a melhor forma que conheço de evitar a armadilha de pensar que se tem algo a perder. Você já está nu; não há por que não seguir o coração.
Foi um discurso excepcionalmente emotivo de alguém que se achava ser sem coração. Porém, na verdade, sempre achei que o problema de Jobs era ter coração demais da conta, pois sempre parecia estar consciente de que, no fim, não há nada. Às vezes, essa urgência se manifestava em inspiração, às vezes em mesquinharia, outras em humor ou seriedade – mas era sempre urgente.
Quando ele morreu, em cinco de outubro de 2011, li e reli o discurso para guardá-lo no coração – o que foi bom, porque tive o AVC dias depois. Tive o privilégio de viver muitos dias mais, com a consciência de que eles são limitados.
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Se alguém quiser analisar minhas motivações para ser bem dura com as pessoas com quem trabalho quando inevitavelmente fazem alguma bobagem – e sou famosa por essa característica –, a raiz está aí. Ou seja, basicamente vocês não têm tempo para ser tão descuidados e eu tenho de lhes lembrar disso porque não tenho tempo.
Você recebe essas cutucadas da morte o tempo todo – ou, como o professor budista Frank Ostaseski a descreve, “a professora secreta que se esconde à vista de todos”.
A morte de Perry foi outra lição. Como muita gente, eu era superfã de Barrados no Baile quando estava no auge, dedicando grande parte do meu tempo precioso – quase cada segundo – a ver e discutir as vidas dos garotos da West Beverly Hills High, o que, sem dúvida, incluía as peripécias fantásticas de seu personagem, Dylan McKay, que dizia coisas do tipo: “A única pessoa em quem se pode confiar neste mundo é em você mesmo.”
Bom, pode até ser – a menos que você tenha a sorte de contar com um irmão que lhe salve a vida.