Incorrigível frasista nos embalos do improviso, o candidato-presidente Lula acrescentou mais uma pérola ao colar da sua campanha, no primeiro comício inaugural, em Governador Valadares (MG), com o palanque adornado pela presença do aliado, candidato a senador, o conhecido ex-governador de Minas, Newton Cardoso, que ocupa espaço como peso-pesado de barriga tão volumosa como o seu rico prontuário.
Em nenhum momento, Lula deixou transparecer o constrangimento que embaraçava os candidatos do PT a mandatos no Legislativo. Ao contrário, com ruidoso bom humor abraçou o novo correligionário que compõe com o ex-governador de São Paulo, Orestes Quércia, e com o também ex-governador do Pará, atual deputado Jáder Barbalho, a trinca de seus assessores éticos e caprichou no discurso, arrancando aplausos da multidão de cerca de 2.500 petistas presentes, devidamente advertidos para não vaiar o aliado estreante.
O orador defendeu a prioridade do Bolsa-Família como o carro-chefe da campanha e rebateu a ranzinzice dos críticos da oposição. Foi enfático: "Como este que vos fala já passou fome, sei que para aquele que toma café de manhã, almoça e janta todo o dia, talvez o Bolsa-Família seja assistencialismo." Caprichou na promessa: "Se isso for assistencialismo, eu vou fazer muito assistencialismo, porque vou continuar cuidando do povo pobre desse país."
A memória de Lula costuma embaraçá-lo no cipoal de contradições. Na comovente história da sua infância de menino pobre e na juventude de conhecidas dificuldades, as lembranças de períodos de panelas vazias misturam-se na omelete das recordações. No seu longo depoimento de 100 páginas do clássico livro da escritora petista Denise Paraná Lula, o filho do Brasil desfilam mais de uma dezena de referências que desafiam a conexão da coerência.
Na página 72, o desabafo soa como cantoria desafinada: "Muitas vezes eu cheguei a passar fome. Não passar fome de não ter nada para comer. Ter o que comer às vezes você tem. Mas, nem sempre o que você tem é aquilo que está com vontade de comer". Um tanto confuso, não?
Nas muitas referências ao pai, Aristides Inácio da Silva, o conflito entre o reconhecimento das raras qualidades com a imagem amarga do gênio violento, impiedoso nas sovas aos irmãos e o abandono da esposa, a dona Lindu, guardada na moldura da mãe heroína. Como na pág. 52: "Meu pai era essa figura trabalhadora. Trabalhava muito, mas muito mesmo. Era responsável do ponto de vista de não deixar faltar comida em casa. Mas era por demais violento e uma violência de ignorância".
O pai abandonou a esposa e sete filhos em Guaranhuns, no sertão de Pernambuco, e foi tentar a vida em São Paulo, com a nova companheira, uma prima menor de idade. Lula tinha sete anos quando dona Lindu com seis dos sete filhos, nas sacudidelas de um caminhão, o pau-de-arara tosco, mudou-se para São Paulo, decidida a recomeçar a vida sem o marido.
Na tentativa frustrada de reconciliação, Lula conta (pág. 52) que "naquele dia o meu pai chegou em casa e trouxe uma despesa enorme: trouxe bacalhau, trouxe carne-seca. Porque naquele tempo bacalhau é interessante isso era essa coisa sofisticada que é hoje, pobre também comia".
Na pág. 55, Lula arremata as reminiscências paternas: "Quando nós estávamos no Nordeste e meu pai aqui (SP), ele nos mandava dinheiro. Desse tipo de coisa a gente não pode se queixar. Ele nunca faltou com os compromissos. Sabe aquele negócio dos compromissos do princípio do século? O compromisso era o seguinte: eu garanto o feijão, o arroz, o pão e o lar. Isso tudo ele garantiu." E a marretada na ferradura: "Mas era péssimo marido. Ele brigava muito. Invocava muito com as minhas irmãs, com todo o mundo. Tanto que o coitado morreu como indigente. Meu pai morreu em 1978 como indigente."
Das reminiscências da juventude em São Paulo, na briga por emprego, antes do envolvimento com as lutas sindicais, o registro de tempos difíceis, como da pág. 83: "Em 1965 eu fiquei parado muito tempo. Era uma situação muito difícil, tinha muita miséria na minha casa. Nós passávamos muitas privações."
E parágrafos adiante: "Foi uma crise de desemprego em 1965 muito, muito pesada. Eu sobrevivia fazendo bico para ganhar algum dinheiro. Eu comia o pão que o diabo amassou. Eu me lembro que chegava na hora de comer e não tinha o que comer; se tinha era arroz e batatinha cozida no molho. Não tinha carne, não tinha frango. Foi um período muito ruim na nossa vida."
O destino guiou o presidente Lula para as veredas da bonança. Desde que foi atraído pelo movimento sindical, aos 23 anos de idade, e galgou os degraus da liderança, só fez na vida o que gosta. Até hoje. Viajou pelo Brasil e pelo mundo, foi deputado constituinte com escassa presença, presidente do PT e candidato a presidente em quatro campanhas. Continua em campanha, pouco pára no seu gabinete no Palácio do Planalto.
E é o favorito para novo mandato de quatro anos. Vida que segue.
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