| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Lulá lá, Brasília, Palácio do Planalto, oito anos. Lula aqui, República de Curitiba, suíte da PF, 12 anos? Como o ícone do proletariado metalúrgico se enredou na própria teia ? Um pobre, mesmo inteligente, está sujeito às maiores tentações quando vai experimentando o deslumbramento do poder e a crescente cobiça pelo dinheiro fácil para o partido, para os amigos e até para si mesmo. De início, dando ouvidos demais a seu ministro mais culto e esperto: “No governo do PT, não roubamos nem deixamos roubar”. O máximo que se permitiu foi um progressivo aliciamento dos vulneráveis parceiros congressistas em crescentes deturpações das macrolicitações, aditivos e sobrepreços na tertúlia financeira em cima do erário, macropropinas repartidas com altos dirigentes da Petrobras e outras empresas públicas em conluio com as gigantes do empresariado construtor.

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A maioria destes grandes malabaristas hoje já está no ócio de suas mansões com aquele ornamento facilmente dissimulável designado de tornezeleira eletrônica. Não tem ela nem laser, nem sineta. Houve tantas delações premiadas que vai acabar sobrando tão somente para o deslumbrado Luiz Inácio. Exceção outra para confirmar a regra, só mesmo o Cabral, recordista na variedade de crimes de corrupção, ostentador e abobalhado pela impunidade acreditada como permanente. Tenha-se em lembrança, por outro lado, o desembargador Nicolau e a cornucópia de gastos no prédio do tribunal na Pauliceia; o escorregadio Maluf e suas obras fantásticas com saldos desviados para paraísos fiscais; o libidinoso Abdelmassih; e outras “presas” menores. Curitiba tem seu vai-vem Bibinho, aquele da Alep. A polícia prende, juízes soltam. Concessões humanitárias como indulgências, dada a idade ou a enfermidade.

Qualquer espectador já sabia que o placar do habeas corpus no STF seria 5 a 6 ou 6 a 5. Vamos conhecendo melhor suas excelências do Supremo. Não nos cabe, meros cidadãos, o direito de julgar nem juiz de Direito e muito menos ainda os togados. Mas nos cabe, sim, o direito de livremente expressar opiniões, sobretudo quando elas se apoiam na verdade ou pelo menos no racional. Isso também está garantido na Constituição brasileira, em seu artigo 5.º, inciso IX.

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Lula quer porque quer, mas não poderá concorrer a novo mandato presidencial. Está colhendo o que plantou

A Constituição dos Estados Unidos, promulgada em 1787 e ratificada em 1789, trouxe no preâmbulo “We the People...”. Envolve apenas sete artigos e 27 emendas em seus 230 anos de existência. A brasileira é bem mais jovem (a sétima versão é de 1988) e bem mais obesa: nove títulos, 250 artigos e já recebeu 104 emendas. Meno male que Ulysses tenha presidido os trabalhos constituintes (e já não se fazem peemedebistas daquele quilate; louvem-se exceções como Pedro Simon, infelizmente contrabalançado pelos Calheiros, Jáderes, Sir Neys, enfim, a companhia ilimitada...). Se o presidente da República então em voga a tivesse presidido, certamente, além de alguns artigos para fixar juros e perdoar dívidas de latifundiários, um saque preferencial único na véspera da derrocada de algum Banco das Docas teria também lá sido embutido. Não foi, de fato, preciso. Mas aconteceu.

Pois bem: não há como negar que, na passarela do grande debate e decisão do STF, cada ministro aportou o brilho de sua inteligência. Uns mais, outros menos. Mas todos, absolutamente todos, se aferrando, na defesa vigorosa de seus argumentos, às letras da Constituição Cidadã. Tivemos Gilmar Mendes, uma escolha menos feliz do professor-presidente FHC ( “esqueçam-se de tudo que escrevi”), talvez com a mais pobre intervenção, reiterada pela verborragia deselegante e mais recente soprada desde Portugal – se tivesse passado, no retorno, pela Espanha, poderia correr o risco do repeteco do rei Juan Carlos (refeito de algum treino com carabina em safári africano) antes verbalizado ao ditador venezuelano Chávez: “Por que no te callas?”. Tivemos Marco Aurélio (abusivo em seus apartes) e Lewandoski, ambos cometendo descortesias com a presidente da Corte, o que comprometeu a parte boa das respectivas alocuções. Tivemos Celso, inclinando-se pelo habeas corpus, mas sem comprometer o proverbial domínio jurídico de sempre e alinhavando um projétil responsivo ao extemporâneo manifesto da parte de generais do Exército.

Tivemos o jovial Toffoli, um “libertário” (que o digam Maluf, Picciani e Demóstenes, em imagem especular de Gilmar, queira Deus que seja temporária, pois logo vai assumir a presidência do STF) que realmente surpreendeu, seja pela elegância, seja pela cultura nas letras da arte advocatícia, pois soube propor a única alternativa de meio termo: que a segunda instância (um TRF) ceda lugar, quando da decretação prisional, à terceira (o STJ). Não emplacou, mas deixou plantada sua semente. Momentaneamente dá para esquecer sua célere ascensão: ex-advogado do PT, ex-auxiliar de Zé Dirceu na Casa Civil e indicado direto de Lula para a suprema corte. Estava, assim, assentado o quinteto em pré-derrota.

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Fachin, outro orgulho dos paranaenses ao par de Moro e Dallagnol, relator, incólume às ameaças aos familiares, reafirmou a integridade serena de suas decisões. Incidentalmente, é fã do papa Francisco. Similis similibus congregantur. Os votos subsequentes de Barroso, Fux e Moraes, cada qual com matizes próprios e igualmente constitucionais, acompanharam o relator. Rosa, a mais silenciosa, desfez o enigma reinante, pois, até o início do júri mór, era tida como pró-PT ou pró-Lula pela mídia e pela maioria dos cronistas políticos. Sustentou-se na colegialidade de decisões anteriores do próprio STF. Talvez o voto mais facilmente inteligível pela maioria da população, e o fez negando o pedido de HC. Afinal, pusilanimidade não pode ser a marca de um juiz.

Estabelecido o empate de 5 a 5, o “desesperar jamais” foi água abaixo. Batochio, em uma manifestação permissível ao advogado de defesa, já prevendo que a tese “in dubio pro reo” não vingaria, tentou levantar a tese de impedimento de a presidente da corte exercer seu direito líquido de exercício de voto de Minerva. O coletivo de togados não a acolheu e, rapidamente, Carmen Lúcia decretou o desempate contra o habeas corpus de Lula.

Foi um um embate histórico na Justiça brasileira. Uma longa sessão que maravilhou a massa estudantil do Direito Brasil afora. Houvesse cotas para septuagenários, arriscaria eu mesmo uma nova graduação em alguma faculdade de Direito – e na modalidade Criminal.

Mesmo por conta da rapidez com a qual o juiz federal Moro determinou à PF a prisão imediata, seja pela idade, seja pela saúde ou pela refinada habilidade de articulação (não importando os meios e hábitos antigos para tanto), Lula não deverá permanecer em prisão por muito tempo, mas sua ficha não mais será imaculadamente limpa. Quer porque quer, mas não poderá concorrer a novo mandato presidencial. Está colhendo o que plantou durante seus oito anos de mandato. Perdemos, sim, nós todos a oportunidade de guardar uma bela lembança de quem, de início, também se comprometeu com um melhor destino da população mais carente. Condução sem algemas até pode ser, mas presunção de inocência já é demais. Terá de se contentar com a vitória da pupila Dilma como senadora por Minas – ela agradece ao ministro Lewandowski por seu acidentado desempenho presidindo a sessão do Congresso Nacional que sacramentou o impeachment –, pois lá Aécio está irremediavelmente incinerado caso se atreva nas urnas. A Justiça brasileira tardou, mas não falhará. Afinal, até o escorregadio Maluf, depois de 16 anos, acabou nas grades. Indubitavelmente, um placar inverso de 6 a 5 pelo habeas corpus faria Lula saltar, na próxima pesquisa eleitoral, das 33% cativas intenções de voto para 44% ou até 55%, com um “hasta la vista” para Bolsonaro, Alckmin, Ciro, Meirelles, Marina, Maia, Boulos, Manuela e outros postulantes (Michel e Collor, já não mais, por favor!). Ainda neste contexto, o Podemos teria de suar o dobro para emplacar num primeiro turno nosso aguerrido senador Alvaro Dias.

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José Domingos Fontana é professor emérito da UFPR.