A viagem de Lula ao Oriente Médio foi assunto de todos os jornais da semana passada. Alguns articulistas disseram que a visita do presidente a essa parte do mundo foi desnecessária. Outros o elevaram à posição de grande negociador internacional. O fato é que para se entender por completo a postura não só de Lula como também do Ministério das Relações Exteriores do Brasil precisa-se recorrer a alguns pressupostos.
Quando Lula afirmou que há um "momento mágico" criado por uma crise deflagrada entre EUA e Israel e que esse fato possibilita um acordo de paz entre palestinos e israelenses, ele se referiu à quebra de uma indefectível aliança entre os governos norte-americano e israelense desde a fundação do Estado de Israel em 1948. O apoio dos EUA à fundação do Estado de Israel não foi solitário. O mundo todo apenas fez cumprir uma determinação votada pela Assembleia-Geral da ONU que partilhou, em 1947, a região da Palestina em dois Estados, Palestina e Israel, e que internacionalizou a cidade de Jerusalém.
Ser oposição à Liga Árabe, que lutou contra Israel de 1948 a 1949, era consenso internacional, portanto. Nessa chamada Guerra de Independência de Israel o status de internacionalização de Jerusalém foi ignorado e a cidade foi dominada a oeste pelo Exército de Israel e a leste pelo Exército da Jordânia. Mas quando em 1967 o Estado de Israel ocupou os territórios da Faixa de Gaza e da Cisjordânia com o lado leste de Jerusalém, a ligação entre EUA e Israel deixou de ser compreendida.
Apesar de a política israelense ter incentivado a construção de assentamentos para famílias judias nos territórios ocupados, apenas agora, em 2010, a secretária de Estado Hillary Clinton chamou de insulto o anúncio da construção de mais 1.600 habitações do lado leste de Jerusalém. Essa é a crise a que Lula se refere.
Desde a ocupação da Cisjordânia, em 1967, as autoridades israelenses confiscaram 84% das terras de Jerusalém. Em 1948, não mais de 4% das terras estavam nas mãos de colonos judeus de várias nacionalidades, enquanto outros estrangeiros possuíam 2%, e os árabes palestinos, 94%. Hoje Jerusalém tem por volta de 300 mil israelenses e 100 mil palestinos. Esses palestinos se concentram no lado oriental e o reivindicam como capital do seu futuro Estado. Israel considera Jerusalém indivisível, porque o lado tido como sagrado da cidade é justamente o lado leste.
Até hoje todos os parcos acordos de paz entre palestinos e israelenses sempre esbarraram na disputa por Jerusalém. Em 1993, quando o líder palestino Yasser Arafat e o então primeiro ministro israelense Yitzhak Rabin criaram a Autoridade Nacional Palestina (ANP), a foto do episódio só foi possível porque deixaram para depois as discussões sobre Jerusalém e a volta dos refugiados. Quando em 2000 o primeiro ministro de Israel Ehud Barak chegou próximo de uma conciliação ao propor uma administração compartilhada da cidade, Yasser Arafat não a aceitou sob pena de ser apedrejado pelos palestinos. Por conta disso, Barak perdeu o posto para o líder conservador Ariel Sharon.
De Sharon até agora as coisas pioraram. Em 2005, 8 mil israelenses foram retirados à força da Faixa de Gaza pelo exército de Israel e transferidos para a Cisjordânia. O que parecia beneficiar 2,5 milhões de palestinos só acirrou o conflito. À medida que Gaza foi cercada pelo exército de Israel, transformou-se em reduto do Hamas escolhido pelos palestinos para gerir o primeiro ministério da ANP em 2006 e que prega a destruição do Estado de Israel.
O Hamas conta com financiamento iraniano, e aqui voltamos a Lula. Há quem diga que a pretensão de incluir o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU está seriamente ameaçada desde que a política internacional de Celso Amorim oficializou apoio a Ahmadinejad. O que me parece é que não há boa vontade em se entender essa postura do governo brasileiro.
Tanto Lula quanto Amorim sabem o que os EUA e Israel fingem não saber. Quanto mais se excluir o governo iraniano, quanto mais se cercar os palestinos com exércitos e muros, mais haverá argumento para atitudes desmedidas como reação. Palestinos que se matam não têm nada a perder e são inspirados no discurso do falecido Aiatolá Khomeini homem que instalou no Irã o governo teocrático propagandeado hoje pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad.
É claro que ninguém em sã consciência apoiará nos dias de hoje um embate nuclear, nem fará coro com quem nega o holocausto. Não é isso que Lula está fazendo. Ele está atrás do que foi pautado para ele. Ser líder dos países periféricos. Lula também busca se colocar em um lugar diplomático onde jamais outro brasileiro se colocou. O governo iraniano é repressivo e arcaico, mas não cabe ao Brasil transformá-lo. O que se precisa é minimizar os argumentos que o Irã tem para colaborar com o Hamas entre os palestinos e com o Hizbollah no sul do Líbano.
De grupos como Hamas e Hizbollah não se espera bom-senso, mas dos governos israelense e norte-americano, sim. Lula e Hillary Clinton já entenderam isso. Falta a Benjamin Netanyahu, primeiro ministro de Israel, também entender. Ou esclarecer ao mundo que sua função é justamente impedir que os palestinos consigam finalmente fundar o seu Estado. Para Netanyahu é bom negócio o Hamas no poder palestino, pois assim ele não precisa negociar com quem prega a destruição de Israel. Cabe a Lula tentar mediar o inegociável.
Luciana Worms é bacharel em Direito pela USP, professora de geopolítica e escritora, autora de Brasil século XX Ao pé da letra da canção popular (prêmio Jabuti em 2003)
Governadores e oposição articulam derrubada do decreto de Lula sobre uso da força policial
Tensão aumenta com pressão da esquerda, mas Exército diz que não vai acabar com kids pretos
O começo da luta contra a resolução do Conanda
Governo não vai recorrer contra decisão de Dino que barrou R$ 4,2 bilhões em emendas