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Muitas vezes, pensa-se que a Reforma Protestante foi um movimento estritamente religioso, reduzindo sua esfera de impacto às quatro paredes da igreja. Contudo, antes de labutar sobre a natureza da salvação, Lutero, o líder da Reforma Protestante, teve de resolver uma questão ainda mais básica, que esteve diretamente relacionada com a educação de seu tempo e não menos na nossa: a natureza do conhecimento.

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Em seu livro História da Reforma, Carter Lindberg defende o impacto significativo da Reforma em áreas de conhecimento, dizendo, especificamente, que as “doutrinas reformadas da justificação e vocação também tiveram grande impacto no desenvolvimento da educação e das ciências”.

É verdade que houve muitas contribuições posteriores dos reformados (Calvino na economia e na política, os puritanos na ética e no trabalho etc.), mas a raiz dessas contribuições estava na mudança radical de paradigma epistemológico que Lutero promoveu, ou seja, na mudança da autoridade sobre a reflexão em torno das etapas, da natureza e dos limites do conhecimento humano.

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Para compreendermos isso, devemos nos lembrar que Martinho Lutero era um monge da era medieval e, como tal, estava inserido em um sistema escolástico de ensino. O escolasticismo surge em meados do século 9.º, tem seu auge no século 13 e é comandado por religiosos que buscavam satisfazer as demandas por respostas racionais às exigências da filosofia pagã.

Apesar de ser considerada uma escola de pensamento, se olharmos com exatidão, veremos que a escolástica não se enquadra nessa categoria conceitual. Na verdade, o escolasticismo é mais um método filosófico que foi utilizado e aprimorado nas universidades da Idade Média do que propriamente uma escola em seu sentido corporativo e organizacional como conhecemos atualmente. Também sabemos que a escolástica foi um momento histórico especialmente livresco, ou seja, um período completamente dado ao estudo formal de abordagens técnicas e à leitura. É um método que levou os intelectuais da Baixa Idade Média a um nível de rigor ímpar na história.

Essa tese é reforçada por alguns escritores e estudiosos, como o brasileiro Mário Ferreira dos Santos, defensor da ideia de que “a escolástica representa um período de máxima importância da filosofia. (…) Mas o que a tornou imensamente válida, e de uma importância ímpar, foi a realização da mais extraordinária análise que se conheceu na história do pensamento humano. A análise, levada em extensão e intensidade, permitiu que surgissem novos veios para o filosofar, veios que ainda não foram devidamente explorados”.

O movimento escolástico foi representado por grandes intelectuais medievais, tais como Alberto Magno (1206-1280), Alexandre de Hales (1185-1245), Roger Bacon (1220-1292) e São Boaventura (1221-1274). Contudo, ela “alcança seu ponto mais alto” através do dominicano São Tomás de Aquino (1225-1274). Assim como a grande maioria dos teólogos medievais, Tomás tinha um enorme apreço pelo pensamento de Aristóteles (384-322 a.C.), um filósofo grego pagão. Aristóteles concebia o centro da natureza humana no intelecto e cria que a mente humana possui potencialidades naturais capazes de explicar a razão de todas as coisas.

Tomás de Aquino tratou de “batizar” Aristóteles e empregou seus métodos de lógica na elaboração de uma epistemologia cristã: “Tomás de Aquino, o ícone do escolasticismo católico romano, concebeu a razão natural como independente da revelação de Deus em Cristo Jesus. A erudição, a moralidade, a vida política e a ‘teologia natural’ foram, então, tal como áreas autônomas da razão natural, praticadas de uma forma pagã-aristotélica.”, diz Herman Dooyeweerd.

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O Aquinate sustentava a ideia aristotélica de que o intelecto de forma natural (sem a revelação da Palavra) poderia alcançar a plena verdade sobre a realidade. Como defende Francis Schaeffer, na “concepção tomista, a vontade humana está decaída, mas não o intelecto”. Lindberg comenta que, de acordo com Tomás, “a graça não despreza a natureza, mas sim a completa. Por isso, a frase escolástica famosa facere quod in se est (faz o que está dentro de ti) significa que a salvação é um processo que se desenvolve dentro de nós na proporção em que nos aperfeiçoamos”.

Essa concepção de intelecto intacto e de potencialidade racional natural predominou nas universidades medievais durante muito tempo, levando os teólogos escolásticos a ignorarem os efeitos noéticos da queda, depositando uma altíssima confiança na razão natural para se obter o conhecimento de Deus, do homem e da natureza.

No entanto, a mudança de paradigma epistemológico começou a ocorrer exatamente com Lutero. Poucos sabem, mas, um mês antes das 95 Teses, Lutero produziu um controverso documento chamado Disputa contra a Teologia Escolástica, que consistia numa coletânea de 97 proposições contrárias à filosofia e à teologia predominantes entre os escolásticos do seu período. Em sua 43.ª Tese, Lutero defende: “É um erro dizer que nenhum homem pode se tornar um teólogo sem Aristóteles. Contrário à opinião geral”. Vemos um reflexo dessa rejeição de Lutero ao aristotelismo medieval quando reformas curriculares na Universidade de Wittenberg haviam substituído estudos escolásticos por estudos bíblicos baseados em Agostinho: “Nossa teologia e Santo Agostinho estão progredindo bem, e com a ajuda de Deus, tornaram-se proeminentes na universidade. Aristóteles está sendo gradualmente tirado do trono; sua condenação final é só uma questão de tempo [...] De fato, ninguém pode esperar ter sequer um aluno caso se recuse a ensinar essa teologia, isto é, aulas com base na Bíblia, sem Santo Agostinho ou em algum outro mestre de eminência religiosa”, escreve Lutero na primavera de 1517 a um amigo em Erfurt. Mas por que Santo Agostinho?

Santo Agostinho (354-430 d.C.) foi um teólogo católico que defendeu a completa corrupção da natureza humana baseado no testemunho das Escrituras de que o homem está morto em seus delitos e pecados e naturalmente destituído do conhecimento de Deus (Efésios 2,1; Romanos 3,23). Agostinho ensinou a necessidade de total redenção do homem mediante Jesus Cristo, inclusive a redenção da mente (Rm 12,2). Para Agostinho, o homem natural – sem a regeneração que é dom de Deus – não pode jamais alcançar conhecimento verdadeiro ou exato sobre qualquer coisa, nem sobre si mesmo, nem sobre a natureza nem sobre os limites de ambos, já que todos esses conhecimentos dependem do conhecimento de Deus.

A Escritura – essa revelação especialmente escrita de Deus – deveria ser a autoridade máxima ao ensinar o homem sobre sua verdadeira natureza, sobre o verdadeiro ser de Deus e sobre a criação ou realidade. O homem deveria crer na autoridade das Escrituras. A fé na Palavra divina deveria anteceder e guiar o uso da razão natural: crede, ut intelligas (“creia para que possa entender”), dizia Santo Agostinho.

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Lutero herdará de Agostinho essa noção de autoridade das Escrituras acima da razão e a aplicará não só à sua maneira de pensar, mas sobre o que significa pensar e conhecer à luz das Escrituras. Com essa mudança de autoridade no ponto de partida do pensamento – isto é, de um escolasticismo tomista-aristotélico para uma epistemologia agostiniana fundamentada na Bíblia –, todo o empreendimento intelectual cristão a respeito de qualquer área da vida havia sido radicalmente transformado. Será que os professores reformados que flertam com as pedagogias dicotômicas entendem ainda hoje esse legado?

Fernando Razente é historiador com atuação em rádio, assessoria e mídia.