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A Luz do Natal x as trevas do mundo

O papa Francisco no Angelus de 17 de dezembro: pontífice aprovou declaração do Dicastério da Doutrina da Fé sobre bênçãos. (Foto: Angelo Carconi/EFE/EPA)

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E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam (Jo 1, 5).

Este é um texto escrito única e tão somente com o objetivo de refletir teológica e espiritualmente no âmbito da doutrina e da espiritualidade da Igreja Católica Romana. Não há nenhum sentido ou alcance aplicável deste texto com efeito de denegrir ou abalar a dignidade das pessoas.

A Páscoa é a principal festividade cristã, mas o Natal é a festa mais encantadora: todos temos a experiência do nascimento das crianças, e isso é o que mais se nos parece com a promessa da ressurreição, a Luz do Mundo, que é Cristo, veio trazer a verdadeira Paz, a qual, se acolhida no fundo do coração, transforma a própria realidade e o entorno,lenta, mas profunda e efetivamente. “É do coração que vem os males” (cf. Mt 15, 19), e somente corações reconciliados pela Paz de Cristo podem sanar os conflitos do mundo, cuja paz diplomática tem se mostrado, ao longo de toda a modernidade e no mundo contemporâneo, de uma ineficácia atroz: apenas uma trégua entre novos conflitos.

As trevas do mundo não “compreendem” a Luz, e isso em sentido duplo: não a “entendem”, porém tampouco a “encerram”. Depois que o Verbo se encarnou e montou sua tenda entre nós, mesmo os períodos mais trágicos da história humana têm uma cota maior de bem que de mal. É assim ainda que a Igreja já não tenha mais tanta incidência cultural ou que, ultimamente, pareça adotar os próprios critérios mundanos como seus. Mas bastaria que houvesse uma pessoa em estado de graça no mundo, para que o bem fosse maior que a infinidade de males. Nem o obscurecimento momentâneo da doutrina e da prática da Igreja católica pode abalar a confiança na Luz que desce da estrela guia ao presépio e daí se irradia para ser acolhida pela humanidade.

O novo documento, Fiducia Supplicans permite literalmente a bênção aos “casais do mesmo sexo” (sic) e para suas “relações”.

Um pouco antes do Natal, a Igreja foi estremecida com a notícia de mais um documento oficial ambíguo e bombástico, que autoriza algo contrário à Tradição católica: a bênção de “casais” (sic) irregulares e do mesmo sexo. Não a bênção a indivíduos que estejam em situação de pecado, o que sempre pôde acontecer, e que inclusive foi reafirmado num documento recente do mesmo pontificado, de dois anos atrás, o qual, contudo, negou a bênção à “união” e à “relação” (cf. Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé a um dubium sobre a bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo, de 22/02/21). O novo documento, Fiducia Supplicans permite literalmente a bênção aos “casais do mesmo sexo” (sic) e para suas “relações” (cf. n. 31).

Qual é o grande paralogismo do novo documento, que aparentemente permitiria uma “continuidade” com o documento anterior e com a Tradição de sempre da Igreja? A dissecação fictícia entre a “união” e o “casal” ou “relação”, em primeiro lugar; e a consequente dissecação (também fictícia) entre o “pecado objetivo” da situação e os “bens” que estariam presentes na “relação”, em segundo lugar.

Uma confirmação indireta da verdade da minha argumentação é a manifestação de diversas Conferências Episcopais africanas contrárias ao documento.

O documento recém promulgado se esmera, corretamente, por separar as novas bênçãos permitidas dos ritos litúrgicos oficiais (dos chamados “sacramentais”) e das celebrações civis, e considera tais bênçãos um ato de piedade popular que suplica “graças atuais” (as quais movem os fiéis à graça santificante ou “estado de graça” propriamente dito) sobre tais “casais”. Mas isto não é suficiente para afastar o erro teológico. Primeiramente, devemos entender a ilegitimidade teológica da distinção realizada entre “união” e “casal”. Depois, a justa razão para se abençoar os indivíduos em estado de pecado habitual (que não são apenas aqueles cujo pecado é público, mas todos aqueles que vivem em qualquer vício sem arrependimento), ou onde radicam os bens sanáveis e abençoáveis na realidade dessas pessoas, ou ainda, a ilegitimidade de encontrar tais bens resgatáveis na situação de pecado. Desculpem-me se soam explicações demasiado “metafísicas”, mas a questão o exige.

Na mente do cardeal Tucho Fernández, que escreveu o documento, a “união” é um análogo do sacramento do matrimônio enquanto fundamento (ontológico e jurídico) da relação conjugal. Em outras ocasiões, Tucho já se manifestou no sentido de que o problema seria a equiparação da união civil e do matrimonio sacramental; mas não, o problema, do ponto de vista católico, é a luxúria em sua gravidade específica. Para o prefeito do Dicastério da Fé, é como se, abstraindo logicamente o fundamento condenável, restaria o “casal” ou a “relação” como algo sanável. Mas isso é mero artifício lógico e uma impossibilidade real. Tal relação continua se fundando sempre efetivamente numa união de índole ou interesse sexual (sendo irrelevantes a existência ou não da formalidade jurídica, e a aceitação ou não da mesma): é esta que “forma”, por assim dizer, a “relação” enquanto tal.

Para entendê-lo é preciso entender a filosofia das “relações”. Nas relações “categoriais” ou acidentais (que se apoiam na substância ou realidade já constituída), o fundamento dos relatos não é algo que fica “para trás”. Assim, por exemplo, na relação da paternidade/filiação natural (uma relação categorial, porém inseparável), o fundamento é a “geração”, mas não tão somente enquanto o momento da concepção do zigoto resultante do ato sexual, senão, em termos biológicos, como a carga genética que o filho carrega por toda a vida enquanto presente no e transmitida pelo pai; em termos de uma metafísica simbólica, é o reluzir formal do pai no filho. Nas duas perspectivas, o pai “está” no filho e o filho “vem” (está sempre vindo) do pai – a linguagem bíblica e teológica sobre a Santíssima Trindade não é casual.

No exemplo do matrimônio (abstrairei aqui da diferença entre o casamento natural e o sacramental, pois este segundo corresponde ao da natureza criada justa), a relação categorial (inseparável, considerando a deliberada indistinção) funda-se numa promessa moral (“contrato” nos termos jurídicos) que acompanha os cônjuges “em todos os dias de sua vida conjunta” (assim inclusive é dito). O Matrimônio é um sacramento que perdura, não “acaba” na cerimônia, como o Batismo, a Crisma e a Ordem não acabam. Estes outros três imprimem “caráter” por toda a vida dos indivíduos (inclusive após a morte, como potência para a adoração eterna), já o Matrimônio se extingue com a morte de um cônjuge – e a Presença Eucarística com a corrupção do pão, enquanto a Graça da Penitência, da Comunhão Eucarística e da Unção dos Enfermos dura enquanto durar o estado de graça.

No (indevido) análogo das relações homossexuais, aquilo que os une ou institui sua relação (um interesse sexual que, do ponto de vista da moral católico, é intrinsecamente injusto) jamais é algo dissecável da “relação” constituída, mas é o fundo permanente da mesma. Assim, não existe nenhuma possibilidade de realizar de modo justo e ortodoxo tais bênçãos, de contemporizar querendo “manter a doutrina”, sem distorcer a própria realidade das bênçãos divinas.

Desde Amoris Laetitia há uma espécie de “refrão” nesse pontificado: a contraposição “situação moral de pecado objetiva” X “graça ou bem subjetivo”.

O primeiro sofisma do documento em questão, portanto, é distinguir a “união” como a cerimônia ou “instituição” (esta que seria, na mente de Tucho, algo condenável, uma simulação de matrimônio) e o “casal” ou “relação” como uma peculiar “amizade” constituída. Mas isso é falacioso, como visto. O segundo sofisma deriva deste, e consiste em dizer que a bênção suplica “graças atuais” para o que “o que há de verdadeiro, bom e humanamente válido em suas vidas e relações”, e para que “as relações humanas possam amadurecer e crescer na fidelidade à mensagem do Evangelho, libertar-se de suas imperfeições e fragilidades e expressar-se na dimensão sempre maior do amor divino” (Fiducia Supplicans, n. 31).

Já é claro que a bênção se destina aos pares enquanto pares, e não aos indivíduos, e aqui, portanto, a bênção ao que é “bom” nas “relações” deve ser entendida nesse sentido, de bênção do supostamente “valioso” na relação do “casal” (sic) enquanto tal – relação fundada no interesse sexual pecaminoso à luz da moral católica –, e não num sentido vago de “quaisquer relações honestas que existam na vida das pessoas”. Mas assim como não é possível dissecar a “união” que institui da “relação” constituída, também será impossível dissecar na relação pecaminosa enquanto relação aquilo que haveria de pecado e aquilo que haveria de “são”.

A verdade teológico moral é que aquilo que porventura existe de moralmente resgatável nas pessoas [da “relação”] individualmente consideradas independe da relação pecaminosa ou do pecado habitual, e se refere à imagem divina ou natureza humana não destruída pelo pecado, ao caráter de batizado que é um permanente convite à conversão (em termos católicos: ao abandono da relação), a alguma virtude humana possível mesmo em meio ao pecado habitual, mas não nele ou por ele... O pecado, repito, não destrói, enquanto existe a possibilidade de salvação, a dignidade da pessoa, não elimina o caráter batismal (a disposição para o arrependimento e a Graça), mas ele mesmo não tem uma “dimensão positiva”. A verdade católica já estava claramente afirmada no documento prévio, assinado pelo cardeal Ladaria.

A problematicidade só nasce em função, por um lado, de uma mentalidade equivocada a respeito da infalibilidade papal e do sentido da autoridade.

Uma confirmação indireta da verdade da minha argumentação é a manifestação de diversas Conferências Episcopais africanas contrárias ao documento, entre outras Conferências e vários bispos, como o cardeal Gerhard Müller, ex-prefeito do Dicastério da Fé e teólogo brilhante (detalhe: bispo alemão, que teve formação teológica progressista na teologia da libertação e na nouvelle théologie de Karl Rahner); entre nós brasileiros, vale salientar a Fé e coragem de Adair José Guimarães, bispo da Diocese de Formosa (GO). O testemunho dos bispos africanos é particularmente eloquente: através de sua fidelidade à Verdade do Evangelho, mostra-se como Deus ama mais a estes pais na fé do continente preto e pobre, do que os novos bárbaros do “caminho sinodal alemão” da Europa branca e opulenta: porque aos primeiros dá uma fé verdadeira e uma santa coragem para contradizer o autoritarismo antitradicional da dupla argentina, enquanto confunde aqueles bispos germânicos soberbos de coração.

A Luz verdadeira já está como que se “encarnando” novamente em muitos pastores fiéis, que estão se erguendo para honrar o Nome de Deus e salvar a Igreja dos mercenários.

Além desse problema conceitual ou doutrinal, há um outro problema muito grave, de ordem epistemológica, que é a ambiguidade do documento, ambiguidade que, infelizmente, tem acompanhado diversas vezes o ensinamento do atual bispo de Roma (desde a infeliz exortação apostólica Amoris Laetitia, cujo autor intelectual é o cardeal Tucho e que inaugurou todo o problema desse pontificado a respeito da teologia moral e dos sacramentos); ambiguidade que assim é praticamente metódica, sempre permitindo aos ortodoxos a defensa teórica da doutrina tradicional, e, aos heterodoxos, a prática concreta contrária à fé eclesial.

Desde Amoris Laetitia há uma espécie de “refrão” nesse pontificado: a contraposição “situação moral de pecado objetiva” X “graça ou bem subjetivo”. É o “jeito” que esse pontificado encontrou para adaptar a distinção de João XXIII entre a “substância do depósito da fé” e as “fórmulas pastorais”. Nessa fase progressista e terminal da aplicação do Concílio Vaticano II, aquela distinção consiste em manter hipocritamente o “ideal moral” e buscar “razões pastorais” (sic) que favorecem o pecado objetivamente grave “em alguns casos”, “evitando o escândalo”, o que, ao fim e ao cabo, instala uma verdadeira anomia prática na vida eclesial, mantendo os dogmas e mandamentos “intocados” – sem afirmação de heresia ou impiedade de modo direito –, porém como “bibelôs” com incidência real “opcional” (“os que querem ser católicos tradicionais podem ser, contanto que permitam a apostasia prática dos que não querem”).

E já não se trata mais de ambiguidades gramaticais, como, lastimavelmente, podemos encontrar no Concílio Vaticano II, que poderiam encontrar benevolentemente uma interpretação ou “hermenêutica da continuidade” ortodoxa. Trata-se ultimamente da ambiguidade como um tipo de afirmação da realidade: a afirmação de uma realidade dúbia, indefinível, indecidível. Epistemologicamente, não é algo que pode ser x ou y, mas algo que é x e y de modo indiscernível. Como quando se vê um bicho se mexer ao longe e se diz “é um gato ou um rato”. Conforme ensina o filósofo Xavier Zubiri (1898-1983): “Na sustentação de traços múltiplos de uma multiplicidade delimitada e definida, a coisa é em realidade ambígua. O delimitado e definido da multiplicidade concerne aos traços; a ambiguidade concerne a sua sustentação, a sua atualização, é um modo intrínseco de atualização. [...]. É a coisa real mesma a que em realidade se atualiza ambiguamente a respeito das simples apreensões. [...] Pois bem, a atualização da coisa real como ambígua se concretiza em um modo próprio de realização de intenção afirmativa: é a dúvida. Dúvida é formalmente a afirmação do real ambíguo enquanto ambíguo. Dúvida é etimologicamente um modo de duplicidade. [...] A dúvida não se funda em uma disjunção: não se funda em que a coisa real é em realidade ou bem cachorro ou bem arbusto. A dúvida se funda pelo contrário em uma conjunção: a coisa pode ser tanto cachorro como arbusto, isto é, se funda em ambiguidade. E como modo de afirmação, a dúvida não é uma espécie de oscilação ou vacilação entre duas afirmações. É pelo contrário um modo de afirmar o que a coisa real é ambiguamente em realidade. Vacilamos porque há afirmação duvidosa, mas não há afirmação duvidosa porque vacilamos. A dúvida é um modo de afirmação, não é um conflito entre duas afirmações. Afirmamos dubitativamente a ambiguidade do que a coisa real é em realidade. Não é um estar indeciso, senão saber que a coisa é em realidade ambígua. Já se sobre-entende que a coisa é realmente ambígua a respeito de minhas simples apreensões. Nada é ambíguo em si mesmo”. (ZUBIRI, Xavier. Inteligencia y Logos. 1ª reimpressão. Madrid: Alianza, 2002, pp. 192-193)

Uma tal ambiguidade, ou a afirmação ambígua enquanto logicamente ambígua, afasta de si o caráter de magistério e repugna o assentimento, pois é incompatível com a função docente e pastoral, já que ninguém pode saber efetivamente a que está aderindo. Tal ensinamento não tem potência sequer para constituir o chamado “magistério meramente autêntico” do papa e dos bispos, não infalível e digno, não de um ato de fé, mas de dócil assentimento da razão e da vontade. Simplesmente não temos aqui um ensinamento.

De fato, porém, o teor do documento não é realmente disputável. A problematicidade só nasce em função, por um lado, de uma mentalidade equivocada a respeito da infalibilidade papal e do sentido da autoridade e da virtude da santa obediência; por outro, da hipocrisia de muitos maus pastores que já aderiam ao erro antes de ser promulgado oficialmente. Tratar disso, porém, excede as possibilidades desse artigo. A verdade demonstrada de modo metafísico e teológico aqui é algo que as “velhinhas do terço” veem sem problematizar. Ter de apelar a tanta argumentação no tópico é um signo de que estamos num momento tenebroso na vida da Igreja, mais preocupada em agradar ao mundo que a seu Senhor.

Voltando, contudo, ao início, a Luz de Cristo, a Graça do Menino Jesus, a Verdadeira Bênção que desce do céu, é sempre maior do que qualquer mancha temporária nas vestes da Esposa ou do que qualquer obscurecimento momentâneo na mente dos eleitos. Onde abundam as trevas, sobreabunda a graça. A Luz verdadeira já está como que se “encarnando” novamente em muitos pastores fiéis, que estão se erguendo para honrar o Nome de Deus e salvar a Igreja dos mercenários. Que esta divisão, necessária, entre a Verdade e o erro herético, entre o trigo de Deus e o joio do Maligno, se realize, e que a Igreja volte a brilhar em sua verdadeira unidade, calcada na rocha da profissão de fé de Pedro, infalível e revelada pelo Pai, e não nas veleidades da carne e do sangue de Simão Barjonas.

Joathas Bello é doutor em Filosofia pela Universidad de Navarra e autor do livro “O Enigma do Concílio Vaticano II".

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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