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Machado de Assis e a condição humana
| Foto: Pixabay

Estudar as obras deste fantástico escritor é algo indescritível. Mas poucas pessoas conhecem o outro lado de Machado de Assis: o seu lado teológico ou, quem sabe, o seu lado observador do ser humano.

Em Dom Casmurro Machado revela o que entendia sobre o ser humano. Ele mostra o dualismo da vida humana. A forma antagônica de viver e de se relacionar. Esta é a grande tensão da vida humana: abrir mão de algo que é essencialmente seu para que o outro lado mais puro seja desenvolvido. O autor do livro revela um lado humano – o isolamento. O estado em que a pessoa gosta de ficar quando passa por dificuldades ou quando deseja esconder algo.

Quem conhece o livro sabe da imensa crise em julgar se houve ou não a traição de Capitu com Escobar. Um grande mistério. É neste mistério que se revela o ser humano apresentado por Machado de Assis. Bentinho dizia que Capitu tinha “olhos de ressaca”. Capitu tinha os olhos verdes e bonitos. Mas este adjetivo de “olhos de ressaca” se dá pela profundidade e pelo desejo no olhar de Capitu. Quem conhece a ressaca do mar sabe o que tento descrever. Na ressaca do mar as ondas são inesperadas, vêm com um impacto muito forte e não se preocupam com as consequências. Quando voltam para o mar, levam tudo consigo. Bentinho descreve o olhar de Capitu desta forma. Era um olhar arrebatador.

Os amigos Bentinho e Escobar se conheceram no seminário. Dona Glória, mãe de Bentinho, desejava muito que seu filho fosse sacerdote. Mas ele não tinha isto como vocação. Os dois abandonam o seminário e continuam com a bela amizade: Bentinho, um advogado promissor; Escobar, um comerciante bem-sucedido. Bentinho casa-se com Capitu, um amor de infância, algo muito esperado por ele. Escobar casa-se com Sancha, grande amiga de Capitu. Os casais ficam muito próximos; era uma amizade muito intensa, a ponto de quase diariamente estarem na casa um do outro. Bentinho percebe que Capitu estava muito próxima de Escobar. Os dois gostavam de ficar sozinhos. Surgem, então, as dúvidas – será que está acontecendo alguma coisa entre os dois?

Bentinho e Capitu desejam muito um filho, mas Escobar e Sancha têm a oportunidade de serem pais em primeiro lugar. O nome da filha é Capitolina, em homenagem à grande amiga Capitu. Depois de certo tempo, Capitu engravida e concebe um filho muito lindo, de olhos azuis. Mas Bentinho não tinha olhos azuis – quem os tinha era Escobar. A criança tem todos os traços do amigo. Bentinho fica paranoico, principalmente quando a sua mãe deixa de frequentar a sua casa – a mãe sempre percebe alguma coisa.

A partir disto a história fica ainda mais envolvente. Machado começa a mostrar o monstro que há no ser humano e a imensa tentativa que o ser humano faz para dominar este lado sombrio. Bentinho tenta matar a criança com um veneno, mas muda de ideia e fica perplexo por ter cogitado tal possibilidade. Em uma tentativa de fugir da realidade tão tenebrosa, ele manda Capitu e seu filho para a Europa. Machado mostra a dificuldade que o ser humano tem em lidar com crises que mexem com a esperança e a estrutura da vida. Bentinho se lança na vida promíscua e passa a sair com várias mulheres. Neste sentido, é possível lembrar-se de Santo Agostinho, que buscava no seio das mulheres aquilo que sua dimensão espiritual tanto almejava: o sentido da vida e a satisfação da alma.

Machado genialmente descreve a real condição humana – o medo de lidar com aquilo que cria uma imensa tensão em nós.

A tentativa que Machado faz com excelência é mostrar o outro lado que habita no humano que tanto temos medo de conhecer. Ninguém gosta de revelar aquilo que é e aquilo que faz. A condição humana é se envolver num manto intransponível. Dietrich Bonhoeffer já dizia, na sua obra sobre ética, que nem tudo pode ser dito e revelado. A vida pede o mistério. O escondido é a própria forma de Deus se manifestar – Ele se revela e se torna mistério. Assim é a sua criação.

Machado tocará profundamente no âmago da condição humana. Dom Casmurro pode ser considerado o “livro do desassossego”. O desassossego essencial que perpassa todo o escrito, trazendo à cena a real desestrutura humana que, em sua condição de pecado, revela o seu lado noturno e sua situação de miserabilidade.

Na sua obra, ele tenta mostrar que a consciência tanto de homens e mulheres é uma consciência alienada da sua própria condição. É a continua simulação da existência, feita por gente que tem na agenda do seu dia a dia a fundamental preocupação de negar a sua própria fraqueza, e se escondendo atrás das maquiagens que o mundo vende. Assim aconteceu com Bentinho, que mandou a família para a Europa, mas precisava fingir que visitava a família por causa da sociedade. Ele adquiriu um falso bem-estar. O contexto social não mudou. Naquela sociedade moderna e higienizada que coloca debaixo dos tapetes da existência a sujeira que é parte essencial dela mesma. Tanto naquele quanto neste contexto, as pessoas não sabem lidar com os invernos da mutação da sua condição de ser – é preciso anular algo para que a vida possa ser melhor.

Machado de Assis é o abridor das sarjetas da alma que tem a coragem de colocar o dedo na ferida e assumir a verdadeira condição humana. Uma coragem machadiana de ser contraditório e não querer fugir das questões sombrias de sua própria existência. Refletindo sobre a obra de Dostoievski, o filosofo Leandro Konder, na sua obra sobre o amor, diz que: “se nos detivermos na contemplação confortável das nossas qualidades não teremos nenhuma possibilidade de analisar nosso lado noturno e não aprenderemos a lidar humanamente com ele”. Esse nosso lado noturno, que abre as nossas vidas para a sombra da contradição que sempre nos acompanha. Não assumi-la é assumir o mundo das máscaras e dos sorrisos falsos. Citando novamente Dostoievski (autor que Machado gostava muito de ler), em Memórias do Subterrâneo: “o ser humano é tão complicado que nele há coisas que ele teme revelar até a si mesmo”.

Assim Machado genialmente descreve a real condição humana – o medo de lidar com aquilo que cria uma imensa tensão em nós. Por isso ele preserva tanto o mistério da vida – os segredos do coração do homem.

Christopher Marques é bacharel e mestre em Teologia, pós-graduado em Ciências da Religião, professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Espiritualidade, e autor de “Quando a Vontade de Viver Vai Embora”.

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