A corrupção deixou de ser assunto restrito às reuniões partidárias, discussões acadêmicas em Direito Penal, criminologia e crônicas policiais, para transformar-se em objeto de pesquisa em ciências humanas. Não só no Brasil, mas nos países democráticos de modo geral, tem se tornado tema merecedor de reflexão sociológica e política, pois se trata de manifestação cultural bastante presente na experiência social, política e jurídica. Como se apresentam a um pesquisador em sociologia, psicologia social, antropologia e ciência política os acontecimentos que chegam à opinião pública conotados como "corrupção"?
Para responder a tal indagação, proponho considerar duas dimensões do fenômeno "corrupção", a partir de uma ideia de Foucault. Se este falava em "microfísica" do poder, dimensão que se contrapõe à macrofísica, o poder político visível, é possível aludir a duas formas de corrupção, a macro e a micro. A diferença não radica na quantidade, como se fosse possível mensurar a corrupção maior ou menor, mas na qualidade dos seus agentes e na abrangência de seus efeitos na sociedade, conjugado com o quantum de poder de que corruptos e corruptores dispõem.
Pode-se dizer que a macrocorrupção é a praticada por pessoas ou grupos sociais que, legitimamente ou não, dispõem da maior parcela de poder na sociedade, seja no setor privado, seja no público ou no social. Com efeito, grandes empresários e detentores do poder político, às vezes, conscientemente ou não, são levados a confundir interesses pessoais, oligárquicos e hegemônicos com o interesse público, do que resulta a possibilidade de malfeitos traduzidos como corrupção.
Esta é a face mais visível, pois é dela que trata a mídia quando noticia escândalos e flagra atos de corrupção na esfera pública.
Contudo, idêntica ilação envolve atos não tão visíveis, pois existe a corrupção dos órgãos judiciais e de controle, quando deixam de atuar com a agilidade e a severidade necessárias, o que os torna colaboradores dos corruptos e corruptores, os quais se beneficiam da notória lentidão da Justiça.
Tais aspectos relevam da macrocorrupção. Mas existem outras facetas deste fenômeno, uma forma praticamente imperceptível para a maioria, as mais das vezes inconsciente. É a microcorrupção, que ocorre no dia a dia das pessoas que frequentemente não se dão conta do aspecto malfeitor de certos atos, por insignificantes que possam parecer.
A microcorrupção escapa ao observador comum, mas não deixa de ser nociva. Mesmo a mídia, embora seja o agente mais poderoso na denúncia da macrocorrupção, com ela colabora quando silencia ou manipula a informação, atendendo a interesses de dominação econômica ou política. E assim, os agentes midiáticos deixam-se envolver pela microcorrupção, que, conforme a intensidade dos efeitos que causa, pode muito bem alçar-se à dimensão macro.
A microcorrupção se manifesta mais intensamente em duas práticas situadas na região fronteiriça entre a lealdade e a contravenção, as quais paradoxalmente sinalizam uma suposta qualidade do caráter brasileiro. É o chamado jeito ou jeitinho, pelo qual se elogia a criatividade, a capacidade de safar-se de problemas que incomodam e adaptar-se a quaisquer situações, ainda que mediante o desprezo das leis, regulamentos e princípios éticos, articulada com outra invenção tupiniquim, a chamada "Lei de Gérson", aquela que manda levar vantagem em tudo.
Existe, porém, um tipo de corrupção micro que nos envolve a todos, cidadãos brasileiros, quando não atinamos com o alcance de nossas decisões em matéria política. Esta forma de corrupção tem nome: omissão, o "dar de ombros", "não estar nem aí", "não é problema meu", o que revela alienação e pobreza de espírito.
O exercício da cidadania não se resume ao ato de votar, nem nas conversas pós-eleitorais contra ou a favor dos eleitos. O oposto da alienação é a consciência que leva à libertação, o que exige participação, mobilização, organização e, sobretudo, colaboração e vigilância.
É preciso ter presente a advertência de Rui Barbosa: "de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto". E, nos dias de hoje, tivemos a contundente declaração de Denise Frossard: "A corrupção leva o cidadão a perder a fé nas suas instituições e, quando isso acontece, ele se torna cínico ou rebelde. E isso é um golpe de morte na democracia e na estabilidade que ela significa".
Se considerarmos que entre Rui e Frossard medeia um século, somos levados a crer que a corrupção é, mais do que doença política, uma enfermidade social profundamente arraigada em nossa cultura, antes delimitada ao ocidente, mas agora global.
Luiz Fernando Coelho, professor aposentado da UFPR, é professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (Cesul) e do Centro Universitário Uninter, em Curitiba, e autor de Helênia & Devília.
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