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A polarização está instaurada no espectro político brasileiro. 2022 traz consigo a mensagem de que a disputa pelos holofotes eleitorais será dada no campo retórico, reacionário e identitário. Isso empobrece a reflexão das bases democráticas que salvaguardam a República e evitam a ascensão da autocracia do Poder Executivo nacional.
Um passeio pela avenida eleitoral brasileira revela que o momento é de indigestas articulações por palanques, formações de chapas presidenciáveis que outrora seriam impossíveis e inauditas, mas que se mostram ávidas pela subida na rampa do Palácio do Planalto.
No cenário internacional, o Chile acaba de eleger seu mais jovem presidente: Gabriel Boric, 35 anos, um ex-líder estudantil pertencente ao campo progressista, tido por seus adversários como de extrema-esquerda. Segundo tatuagem em seu braço esquerdo, Boric se define como “um farol que ilumina uma ilha deserta”. Crítico do sistema neoliberal da macroeconomia, Boric milita pela ampliação do Estado para o bem-estar social, além do feminismo, dentre outros temas de cunho visivelmente ideológico. Ao que tudo indica, o Chile viverá uma ruptura ideológica que, a depender do gabinete formado pelo novo presidente, poderá padecer de ideias práticas, centradas no chão da economia cotidiana do povo chileno, em um momento em que é necessário pacificar o país após as tensões vividas durante o pleito eleitoral.
Como queiram os defensores das pautas comportamentais, seja para a esquerda ou direita, o Brasil também está “cerceando” uma agenda de amplitude maior e mais relevante, tal como a solução para os milhões de desempregados; a necessidade da continuação de um programa forte de vacinação (o que inclui as crianças de 5 a 11 anos); a desestatização de empresas ineficientes quanto à gestão; o novo ensino médio como propulsor de fomento à mão de obra técnica e promotor de transdisciplinaridade capaz de propiciar a ascensão social aos seus educandos; os investimentos ineficazes no ensino superior, pesquisa e extensão universitária; e a derrocada do papel da ciência no discurso operatório da política nacional.
A luta de ideologias – e por ideologias – invade a sociedade pela agenda das pautas comportamentais e identitárias de modo a promover o fracasso do desempenho da gestão pública na economia, simplesmente porque anseiam representar a divisão – a ruptura – de um sistema por outro, como troféu a ser ostentado na estante palaciana.
A dependência das commodities, com crescente processo de desindustrialização, provoca o ultraje de arrecadação de municípios, estados e, por fim, da União, gerando, em um irônico enredo simbiótico, uma interdependência atroz, desembocando no equívoco da PEC dos Precatórios, no abuso do desrespeito ao teto de gastos, na necessidade de suplementação orçamentária, realocação de receitas e desnutrição do poder de investimento público, empurrando o superávit primário a um papel coadjuvante da macroeconomia nacional.
Os avanços da gestão executiva nacional, como a independência do Banco Central e o novo programa Auxílio Brasil, parecem estar exaustivamente deslocados da pauta de trabalhos do poder público, haja vista o desencorajamento de lutas por causas sociais que verdadeiramente promovam o bem-estar e avanço das classes mais vulneráveis da sociedade brasileira.
O campo progressista – representado pela esquerda, centro-esquerda e, quem sabe, a social-democracia – arrefece a discussão em torno dos problemas vitais da sociedade, não representando uma nova classe média formada por microempreendedores e autônomos que perfazem o ideal de luta pela sobrevivência em um mercado cada vez mais desconfigurado pela pandemia. É certo, no entanto, que o atual líder nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dialoga mais (e, talvez, melhor) com os mais atingidos economicamente pela Covid-19, mas ainda é uma iniciativa incipiente, pois grupos ideológicos se misturam ao projeto político do campo progressista para lançar mão de pautas identitárias, que, mesmo importantes e necessárias ao aperfeiçoamento de uma sociedade, não podem absorver a totalidade de um programa de governo em uma gestão de crise, assim como se prefigura para o ano que vem.
O presidenciável da direita, atual chefe do Executivo nacional, Jair Messias Bolsonaro, não consegue, no momento, ganhar fôlego nas pesquisas devido ao histórico negacionista e da valorização descomunal de pautas comportamentais que estão longe de ser o produto político mais importante para a nação. Assuntos como aborto, drogadição, identidade de gênero e afins são elencados – mesmo que reconhecidamente necessários – como primaciais no plano de governo e discurso eleitoral da via destra. Ao arrepio da crise econômica em que se encontra o Brasil, é de causar estranheza a dependência de tais temas para tentar ganhar espaço no eleitorado conservador.
A terceira via, por sua vez, ainda muito esfacelada e indefinida, não conhece exatamente seu público-alvo nem a extensão de sua envergadura. Ciro Gomes cede lugar, pelas últimas pesquisas, a Sergio Moro, mas este não conhece o nicho das ruas, das massas e dos mais vulneráveis economicamente. Tudo, por enquanto, resume-se a articulações de bastidores, aproximações políticas pragmáticas e mero fisiologismo.
Vivemos, em todas as esferas políticas, a obsoleta dualidade construída pela Revolução Francesa de 1789, nos assentamentos de esquerda-direita. Destutt de Tracy, Karl Marx, Antonio Gramsci, Adam Smith, David Ricardo, Edmund Burke e tantos outros pensadores talvez não tenham sonhado a extensão de suas concepções de mundo, suas cosmovisões. A luta de ideologias – e por ideologias – invade a sociedade pela agenda das pautas comportamentais e identitárias de modo a promover o fracasso do desempenho da gestão pública na economia, simplesmente porque anseiam representar a divisão – a ruptura – de um sistema por outro, como troféu a ser ostentado na estante palaciana.
Em outros tempos, como em 1989, com uma visão recém-saída da ditadura militar, a disputa por espaço ideológico faria mais sentido, em um momento em que as instituições estavam sendo erigidas e descoladas do regime ditatorial. Mas, às vésperas do pleito mais importante da redemocratização brasileira, precisamos de mais. A sociedade clama por mais: mais ideias, menos ideologia.
Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras, pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial, e bacharel e mestre em Teologia.