Este texto é uma reflexão. Uma reação a um texto publicado no Estado de S. Paulo pelo sociólogo Paulo Delgado. O que observamos ali é uma simplificação perigosa para um problema bastante complexo, somado a uma série de argumentos baseados em algumas ideias pré-concebidas (ou preconceitos mesmo) e que não condizem com a realidade da Medicina ou da profissão médica no Brasil atualmente.
HL Menken (1880-1956), jornalista e crítico norte americano, dizia que “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. A solução proposta no texto mencionado seria aumentarmos as escolas de Medicina, e com isso teríamos mais médicos disponíveis para assistir às populações menos favorecidas, sobretudo nas “regiões remotas onde só foram os médicos cubanos”.
Não é arrogância buscarmos estruturas adequadas para atendimento nos mais distantes rincões de um país como o Brasil
Ora, exercer a Medicina hoje é algo muito complexo, envolve mais do que colocarmos um número maior médicos no mercado. Aliás, o número de médicos por habitante ou a sua melhor distribuição não são os fatores determinantes mais significativos para a saúde coletiva. Existem outros bem mais importantes e que não foram contemplados no texto. Envolvem cuidados básicos e prevenção, não necessitam do médico, mas planejamento, educação e melhor gestão dos recursos existentes.
Ao afirmar que “se retirarmos do jovem médico a ressonância magnética, a tomografia computadorizada, os exames de imagem e as visitas dos vendedores de remédios, não teremos dez diagnósticos corretos em cem”, o texto nos apresenta uma estatística preocupante, mas não nos dá a origem deste número. Tecnicamente, o que existe é a Medicina bem-feita, humana e baseada em evidências. Fora disso não se chega a um diagnóstico correto e, portanto, o tratamento também será inadequado. Talvez o maior dilema que enfrentamos hoje é termos muita técnica e menos humanidade, e não apenas na classe médica. Nisso estamos, de fato, falhando, mas não em todas as escolas médicas. Muito progresso se fez na educação médica e existem boas escolas brasileiras onde a humanização tem sido prioridade.
Não se trata, portanto, de arrogância ou de exercer o poder médico, como colocado pelo autor, buscarmos formação de qualidade, onde os estudantes de medicina, os futuros médicos, possam conhecer e dominar a medicina, respeitar os pacientes, tomar decisões corretas, assistir aos pacientes com o respeito e a ética que Esculápio e nossa profissão exigem. Saber utilizar os recursos a favor dos pacientes e respeitando o SUS. Não é arrogância buscarmos estruturas adequadas para atendimento nos mais distantes rincões de um país como o Brasil.
Não é arrogância buscarmos um plano de carreira, para que o médico possa não apenas ficar temporariamente, mas que opte por viver em regiões menos favorecidas. Um país rico, mas infelizmente com grandes diferenças sociais. Um país rico com muita gente pobre, os médicos sabem e veem isso no dia a dia. Estão em contato com as populações menos favorecidas durante todo o curso de medicina. Contudo, não se faz diagnóstico apenas com estetoscópio. Não se trata pacientes apenas com medicações sintomáticas.
Concordo com o argumento de que não temos planejamento adequado (“e o acaso quando chamado nem sempre decide o nosso destino”), e com a necessidade de uma formação médica melhor. Em relação a este último ponto, seria interessante ler as diretrizes do MEC para formação médica. O documento deixa claro que não é necessário que os médicos sejam “tocados por uma nova visão de sua formação adequada à necessidade de nosso povo”. Isso não é novo. Precisa, contudo, ser colocado em prática em todas as escolas de Medicina. E, em muitas das boas escolas médicas brasileiras, é a prioridade e o centro da formação. Os jovens médicos em sua maioria se sentem confortáveis para atender aos pobres. Fizeram isto em toda sua formação. Mas necessitam de recursos suficientes para tal. A grande questão é se a abertura de mais escolas, sem qualificação suficiente, é a solução para melhorar o atendimento no SUS. Se fosse, eu seria o primeiro a defender. Mas não é.
Medicina não é um título de mercado, assim como não é o Direito. É vocação. Aliás, se fosse pelo número de advogados formados no Brasil, teríamos a melhor Justiça no mundo. E, se considerarmos o número de escolas médicas no Brasil (o segundo do mundo e atrás apenas da Índia), nós teríamos a melhor Medicina do mundo.
Nós médicos não somos perfeitos. Respeitamos a fragilidade da vida humana e por isso devemos lutar pela qualidade e não pela quantidade. E, basta ficarmos doentes para sabermos disso. Talvez, mais médicos não seja mais SUS.
Cicero Urban, médico Mastologista, professor de Bioética e pós-graduado em Liderança pela Universidade de Harvard, é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.
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