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Em meio à pandemia, o Brasil teve um importante marco jurídico: na noite do dia 12 de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou por unanimidade que o argumento da legítima defesa da honra não poderá ser aplicado em casos de feminicídio, sendo considerado nefasto, horrendo e anacrônico. A tese era válida desde o Código Penal de 1940 e não poderia mais ser utilizada no Brasil desde a Constituição de 1988. Não poderia, mas era.
Em uma sociedade com base colonizadora patriarcal, era aceitável que apenas o homem fosse o portador da honra, visto que para a mulher era reservado o espaço de reprodutora, cuidadora e mantenedora dos afazeres domésticos. Dessa forma, construiu-se um enredo de terror para as mulheres. Um exemplo recente aconteceu em 2016, quando o mineiro Vágner Rosário Modesto esfaqueou sua companheira e foi absolvido por júri popular utilizando o argumento de legítima defesa da honra. “O réu estava cego pelos ciúmes”, eles disseram.
O caso mais emblemático da utilização deste argumento ocorreu no julgamento do assassinato da socialite Ângela Diniz por Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, em 1976. A defesa de Doca justificou o crime alegando que ele “matou por amor”, o que provocou reações nos grupos feministas na época. O empresário ficou preso por 15 anos e morreu em 2020, aos 86 anos, em São Paulo.
Embora o caso do mineiro Vágner não tenha tido repercussão nacional, pois a vítima não era uma figura da sociedade, ambos os crimes chocam pela aceitação social do direito do homem à vida da mulher. Somente no ano passado, foram registradas 105.821 denúncias de violência contra a mulher nas plataformas do Ligue 180 e do Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Isso é o retrato dos efeitos catastróficos da realidade misógina e machista brasileira.
O reconhecimento de que a justificativa da defesa da honra é um argumento absurdo e inadmissível para justificar o injustificável vem em boa hora. A mudança, que valerá diretamente para os casos de agressões e mortes de mulheres, cis ou trans,em casos de violência doméstica, é um grande avanço jurídico e um marco na luta pelos direitos das mulheres brasileiras.
Maria Rassy é advogada da área da família e mestranda em Governança e Sustentabilidade.