Embora não esteja explicitamente disposto no texto constitucional, a tese do marco temporal decorre de uma interpretação combinada dos artigos 231 da Constituição e 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Esse último determinava à União concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Parado desde 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou e concluiu o julgamento que tratava do tema. Por 9 votos contra 2, o STF rejeitou a tese que defende a data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, como balizadora no tempo para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas.
A decisão do STF não vincula a ação do Poder Legislativo, que tem total autonomia para legislar sobre o marco temporal.
A decisão provocou imediata reação no Congresso Nacional. O PL 2903, que já tramitava há anos no Parlamento, foi aprovado em dois dias na Comissão de Constituição e Justiça e no Plenário do Senado Federal. Como já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto foi enviado para sanção ou veto do presidente da República. Registre-se que, além de regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, fixando em lei o marco temporal, o projeto dispõe sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas.
A partir daí surgiram fundadas dúvidas, sobretudo jurídicas, a respeito do andamento dessa matéria daqui por diante. Do ponto de vista do processo legislativo, a última palavra será do Congresso. O presidente da República poderá vetá-lo, no todo ou em parte, e devolver ao Parlamento, que poderá manter ou derrubar o veto presidencial. No entanto, há quem defenda que, no caso de alguma parte do projeto se tornar lei, haveria uma anulação – quase que automática – da norma em função do STF haver considerado “inconstitucional” a tese do marco temporal. Há de se aprofundar esse entendimento. Em tese, só seria possível chegar a tal conclusão se o julgamento fosse sobre uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI). Mas a decisão se deu sobre um Recurso Extraordinário, o RE 1017365, e não numa ADI.
Aliás, a alegada inconstitucionalidade, caso haja, não se demonstra de forma clara nem na tese de repercussão geral fixada após o julgamento. O item III diz: “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.
A dedução lógica é a de que o tribunal não declarou a tese inconstitucional. Apenas entendeu que ela não restringe a pretendida posse das terras por parte dos indígenas. Vale dizer que o STF chegou a esse entendimento, a nosso ver, exatamente por falta de uma norma clara regulamentando o texto constitucional. De qualquer modo, a decisão do STF não vincula a ação do Poder Legislativo, que tem total autonomia para legislar sobre o tema estabelecendo de forma clara as balizas sobre o assunto. Dessa forma, caso se torne lei, aí sim uma ação deverá ser impetrada, dessa vez questionando a constitucionalidade da norma efetivamente criada. Portanto, não há que se falar em atropelo ou confronto entre os poderes. O que se verificou, em boa hora, foi o Congresso cumprindo seu papel conforme previsto na Constituição.
Ismael Almeida é cientista político e assessor legislativo no Senado Federal.