“Nem, nem” – eis a campanha lançada pela Rede, dois dias atrás, em Brasília. Nem Dilma, nem Temer: o impeachment, explicou Marina Silva, “não cumpre a finalidade de resolver a crise”. É que, “ao final dele, a metade que patrocinou a crise estará lá, que é o PMDB”. A solução seria uma nova eleição presidencial, por meio da cassação da chapa no TSE, cujos juízes “devolveriam aos 200 milhões de brasileiros a possibilidade de reparar o erro que foram induzidos a cometer”. Por esse caminho, Marina chega à câmara mais recôndita de seu labirinto. O Minotauro que a habita é o Princípio. Ele se alimenta da negação da política.
A política distingue-se da politicagem quando se submete às balizas dos princípios. Mas, sob o olhar de Marina, a arte da política está sempre contaminada por uma impureza essencial. Para circundá-la, a líder da Rede move-se à frente, numa trajetória de fuga em direção ao Princípio. Ela esquece que suas ações estão inscritas, inevitavelmente, no tabuleiro da política. A campanha do “nem, nem” ilumina essa contradição fatal. O radicalismo principista da rejeição do impeachment apenas aprofunda a crise nacional que se propõe a solucionar.
O diagnóstico geral de Marina é irretocável. A coalizão PT-PMDB produziu uma crise de legitimidade ao enganar os eleitores, prometendo uma estabilidade econômica já destroçada no primeiro mandato de Dilma Rousseff. O golpe eleitoral de 2014 destruiu a governabilidade, que não será restaurada pela transferência do poder ao sócio menor. Juntos, PT e PMDB promoveram o assalto à coisa pública desvendado pela Operação Lava Jato, convertendo a democracia numa caricatura macabra de si mesma. Na manobra da ruptura do PMDB com o governo, entre os ratos que saltam do barco, contam-se diversas figuras envolvidas com o escândalo do petrolão. Para “passar o Brasil a limpo”, na expressão usada por Marina, é preciso bem mais que uma troca de guarda no Planalto.
Um governo Michel Temer não é rima nem solução. Carente da legitimidade eleitoral, enfrentando o bombardeio implacável do PT e da sua tropa disciplinada de sindicatos e “movimentos sociais”, Temer não teria meios para adotar as medidas ousadas exigidas pelo desastre econômico. Cercado pelas máfias de seu próprio partido, Temer ficaria vulnerável às chantagens políticas destinadas a encerrar as investigações da Lava Jato. De fato, para alinhar o poder político ao imperativo de “passar o Brasil a limpo”, é preciso devolver o voto ao povo. Entretanto, no lugar disso, a campanha do “nem, nem” oferece uma oportunidade suplementar ao sócio maior da coalizão governista, que é o PT.
Um governo Michel Temer não é rima nem solução
Fora do universo “sonhático” do Princípio, a vida política obedece a ritmos e prazos definidos legalmente. Um julgamento das contas de campanha no TSE ainda demanda alguns meses. Depois, na hipótese de cassação da chapa Dilma-Temer, o governo ingressaria com recurso junto ao STF. A decisão final não sairia antes de 2017, o que transferiria a prerrogativa de eleger presidente e vice para o Congresso Nacional. Na prática, o sucesso da campanha do “nem, nem” provocaria uma eleição indireta, entregando o Executivo aos indicados por um corpo de deputados e senadores largamente comprometidos com os esquemas do petrolão. O Minotauro é um conservador extremado, não uma fonte de ruptura e renovação.
Confrontados com tais impasses, os arautos do “nem, nem” apelam ao expediente do ilusionismo, reivindicando as renúncias simultâneas de Dilma e Temer, o que ensejaria a convocação de eleições diretas. A renúncia é, porém, um ato unilateral de vontade – e Dilma repete sem cessar, noite e dia, que “jamais” renunciará. Opondo-se ao impeachment e solicitando algo que só a presidente pode fazer, Marina converte o Brasil em refém das estratégias de Lula. No fundo, enquanto o ministro ilegal da Casa Civil engaja-se no feirão da corrupção, comprando deputados a preços de mercado spot, a Rede vira as costas ao jogo da política, isolando-se no cubo de cristal do Princípio.
Marina segue prisioneira de uma resistência cujo sentido perdeu-se no passado. A necessidade do impeachment já não decorre do precário argumento original das “pedaladas fiscais”. Hoje, deriva das evidências de que Dilma elegeu-se com recursos desviados da Petrobras e, mais ainda, da urgência de afastar um governo empenhado na sabotagem das investigações da Lava Jato, numa ofensiva contra a autonomia do Ministério Público e da Polícia Federal e na tentativa de obstrução da Justiça. Dilma e Lula precisam ser apeados justamente para resguardar a oportunidade de “passar o Brasil a limpo”. O impeachment é, no momento, o instrumento disponível para alcançar a finalidade explicitamente almejada pela líder da Rede.
Na aliança tática com o PMDB, o Princípio se perde, mas os princípios sobrevivem. Dilma e Lula dispõem de uma máquina política eficaz, que ainda funciona. Temer, por outro lado, seria apenas um presidente circunstancial. Do impeachment, emanaria um governo frágil, confrontado desde a inauguração com uma encruzilhada decisiva. Temer teria a chance de cumprir um papel histórico, semeando a reconstrução econômica e abrindo as comportas para a continuidade das investigações da Lava Jato. Na direção oposta, cedendo à tentação de reduzir seu governo a um polo de reaglutinação de corruptos à deriva, ele afrontaria a vontade da maioria. Nessa hipótese, o grito de “Fora Dilma” seria substituído por um sonoro “Fora Temer”.
A política é, entre outras coisas, a arte de estabelecer uma hierarquia de prioridades. Marina desrespeita suas regras básicas ao refugiar-se na câmara do Princípio. O Minotauro nasceu do castigo de Poseidon ao gesto de desrespeito do rei Minos. Antes de oferecer involuntariamente uma ajuda providencial a Dilma e Lula, sugiro que ela estude a narrativa mitológica do labirinto de Creta.
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