• Carregando...
 | AFP photo
| Foto: AFP photo

A nação se preparou para as homenagens do 50.º aniversário do assassinato de Martin Luther King, lembrados nesta quarta-feira, mas não podemos simplesmente nos ater à forma como ele morreu, mas sim como viveu.

Mobilizou uma ação em massa para garantir a aprovação da lei que proibia o banimento em acomodações públicas e o direito de voto; liderou o boicote aos ônibus em Montgomery e conseguiu lidar com o terror policial em Birmingham; teve peito para nos fazer atravessar a ponte ensanguentada de Selma e sobreviveu às pedradas, garrafadas e ao ódio em Chicago. Globalizou a nossa luta para encerrar a guerra no Vietnã.

Ele morreu por causa da vida que levou.

Enquanto procurava ir além da dessegregação, buscando o direito de voto e se concentrando na justiça econômica, no antimilitarismo e nos direitos humanos, o sistema o rechaçava com força. Nos últimos meses de vida, foi atacado pelo governo, pela imprensa, pelos antigos aliados e pelo complexo industrial militar. Até os democratas negros lhe viraram as costas quando questionou o apoio do partido à Guerra do Vietnã.

Um grande número de norte-americanos passou a ter uma opinião negativa sobre King nos seus anos finais de vida, segundo as pesquisas de opinião pública. Homem de paz, morreu de forma violenta; homem de amor, morreu odiado por muitos.

Idolatrar King é reduzi-lo ao status de mera celebridade; não exige compromisso, nem ação

Os EUA detestam manifestantes, mas adoram mártires. A bala em Memphis o transformou em vítima para a eternidade.

Temos a obrigação para com King – e nossos filhos e netos – de celebrá-lo na íntegra, um homem radical, ecumênico, pacifista, pró-imigração e defensor erudito dos pobres que passou muito mais tempo protestando e sendo preso por causa da libertação e da justiça do que sonhando com elas.

Esta época do ano me é muito doída, porque é quando me pedem para recordar a noite mais traumática da minha vida.

Tínhamos ido a Memphis, em 1968, para apoiar os lixeiros e sua luta por melhores salários e condições de trabalho. Na noite de 4 de abril, King deveria levar um grupo, incluindo o reverendo Ralph Abernathy, Andy Young, Hosea Williams e Bernard Lee, para jantar na casa do reverendo Billy Kyles, pertinho de onde estávamos hospedados, o Lorraine Motel.

Enquanto nos preparávamos, ele “brigou” brincando comigo, o mais jovem do grupo, por não estar vestido de acordo com a ocasião; eu estava sem gravata. “Aí, doutor, o único pré-requisito para um jantar é ter fome, e não gravata”, brinquei também.

E rimos. King adorava rir.

Leia também: E ele não disse “África” (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 29 de agosto de 2013)

Paulo Cruz: O Black Lives Matter e o racismo ideológico (1.º de agosto de 2016)

Depois do jantar, iríamos a um comício pelos lixeiros. Eu tinha convocado a Operation Breadbasket Orchestra, de Chicago, para tocar na ocasião. King, sempre o mais disputado em todas as cidades por que passávamos, seria orador. Entretanto, seria difícil superar o discurso que fizeram na noite anterior, no Mason Temple, onde prometeu que “nós, enquanto povo, chegaremos à terra prometida”.

Chovia a cântaros, mas o templo, parte da Igreja de Deus em Cristo, estava praticamente cheio. Eu me sentara atrás de King no púlpito. Ele falou com tanta paixão e convicção que vi homens feitos enxugando as lágrimas. “Não estou preocupado com nada; não temo homem nenhum. Meus olhos viram a glória da volta do Senhor”, afirmou para o público de quase 3 mil pessoas.

Nenhum de nós entendeu tais palavras como premonição; já o tínhamos ouvido expressar tais sentimentos antes. Talvez estivéssemos em negação. Embora o perigo estivesse constantemente à nossa volta, nunca pensamos que o Martin Luther King que conhecíamos e adorávamos, que foi aceito no Morehouse College aos 15 anos, formou-se e foi ordenado aos 19, concluiu o doutorado aos 26 e ganhou o Prêmio Nobel da Paz aos 35, fosse morrer aos 39.

No dia 4 de abril, o tiro fatal soou pouco depois das 6 da tarde, quando já nos preparávamos para entrar nos carros para ir ao jantar. King estava na sacada do Lorraine Motel; eu, no estacionamento logo abaixo.

O espírito de King é o nosso guia moral há 50 anos

Horas depois, Abernathy, sucessor de King, nos reuniu no Lorraine. A essa altura, praticamente todas as cidades dos EUA tinham saído do estupor do choque e da dor para a revolta e as chamas. Tínhamos uma escolha a fazer: render-nos à angústia e ao ódio ou honrar o príncipe da paz recém-sacrificado, assumindo o bastão da ação direta não violenta.

Com suspiros profundos, o bastão firme em nossas mãos, seguimos para Resurrection City, o acampamento erguido para a Campanha dos Pobres por King em Washington, onde continuamos seu trabalho pelo fim da pobreza e da guerra. Como disse o reverendo Joseph Lowery, não deixaríamos que uma bala matasse o movimento.

O espírito de King é o nosso guia moral há 50 anos. E continua vivo, nos estudantes de Parkland, na Flórida, que brigam para levar o país a um controle de armas mais sensato; nos professores da Virgínia Ocidental, que estão abrindo caminho e precedentes para outras categorias; no Black Lives Matter, nos Dreamers, em Colin Kaepernick e nos milhares de eleitores afroamericanos que desafiaram os analistas e colocaram um democrata no Senado para representar o Alabama pela primeira vez em uma geração. Está vivo no reverendo William Barber, que ressuscitou a última cruzada de King, a Campanha dos Pobres.

Cristovam Buarque: Nossos sonhos (13 de setembro de 2013)

Ele deixou como legado aos negros a força da resistência e o direito de voto; entretanto, enquanto marchávamos e vencíamos, as forças de reação estavam se reagrupando, preparando uma contrarrevolução. Cinco décadas atrás, foi George Wallace, um governador segregacionista, que estimulou o ódio e a divisão em reação ao movimento dos direitos civis; hoje é o próprio presidente que incita a angústia, o preconceito e o medo.

Estamos em uma batalha pela alma da nação; não basta apenas admirar King. Idolatrá-lo é reduzi-lo ao status de mera celebridade; não exige compromisso, nem ação. Quem valoriza a justiça e a igualdade tem de ter a vontade e a coragem para segui-lo. Tem de estar pronto para o sacrifício.

A luta continua.

Jesse Jackson, reverendo e ex-assessor de Martin Luther King, é o fundador e presidente da Coalizão Rainbow PUSH.
The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]