“Existem dois tipos de pessoas: as que dividem o mundo em dois tipos de pessoas e as que não fazem isso”. A piada do humorista Robert Benchley é engraçada porque se trata de algo que fazemos o tempo todo. O nome disso é viés binário. Nós queremos entender a nós mesmos, o mundo, os fenômenos sociais, mas tudo isso é muito complexo. Em vez de aceitar a complexidade, a incerteza e o desconforto que ambas geram, fazemos algo mais fácil: simplificamos. Dividimos tudo em duas categorias que conseguimos entender, escolhemos uma delas para defender e seguimos, limitando nossa compreensão do mundo a dois lados de uma moeda.
Talvez uma das aplicações mais antigas do viés binário seja a crença de que o homem é dividido entre razão e emoção. Quando só se podia filosofar sobre isso, gerações de pensadores observaram esses dois fenômenos humanos e fizeram suas escolhas sobre qual deles seria superior, alguns no “time razão”, outros no “time emoção”. Há mais de 2 mil anos, Platão defendia que a razão deveria reinar sobre a combinação de instintos e emoções para que a civilização fosse possível. Quando se pode fazer ciência sobre isso, nós repetimos a mesma simplificação: nosso cérebro supostamente teria evoluído em “camadas” e esses dois mundos delimitados por Platão até funcionariam em áreas distintas: as emoções no sistema límbico, enquanto os pensamentos no neocórtex. Fácil de entender. Porém, não é assim que nosso cérebro evoluiu, nem é assim que ele realmente funciona. A batalha épica entre emoção e razão não passa de um mito.
Em poucas palavras, o que chamamos de “racionalidade” não tem a ver com a capacidade de raciocínio propriamente dita. Nosso cérebro, essa pesada massa entre nossas orelhas, no fim das contas não evoluiu até agora nem para pensar, nem para sentir: a maior função dele é orquestrar o corpo no ritmo da sobrevivência. Tudo o que acontece no caminho (emoções, memória, criatividade, empatia) são apenas consequências dessa missão. Um exemplo: se você está em perigo, o seu cérebro o prepara para fugir. Ele faz isso, por exemplo, estimulando a produção de cortisol, hormônio que lhe dá energia extra para reagir. Essa orquestração do cérebro não é uma ação do seu “cérebro primitivo”; é pura racionalidade. É a ação de 128 bilhões de neurônios interligados.
A conexão entre esses bilhões de neurônios se dá por meio de estímulos, que podem ser do nosso ambiente físico ou social. Embora nosso cérebro esteja, desde o princípio de nossa vida, ocupado com a nossa sobrevivência, quando ainda somos pequenos isso não basta. Não podemos arrotar sozinhos, quanto menos sobreviver, o que torna crítico o papel do nosso ambiente social. Além de precisar de cuidadores para obter alimento e proteção, as crianças também necessitam do ambiente social para melhorar um processo que conhecemos como tuning (afinar) e pruning (podar). Isso quer dizer que as conexões neurais estimuladas pelos cuidadores são reforçadas e desenvolvidas, enquanto as que não são estimuladas são enfraquecidas.
Nos anos 60, a Romênia viveu sob o regime comunista de Nicolae Ceaușescu. Uma das políticas do seu governo era o aumento populacional, o que o fez proibir a maioria dos métodos contraceptivos para mulheres com menos de 45 anos. Com isso, a população realmente cresceu, mas um grande número das crianças que foram fruto dessa política teve de viver em orfanatos. Neles, tinham suas necessidades básicas atendidas: alguém as alimentava e trocava suas fraldas, impedia que morressem engasgadas ou sofressem acidentes. O que elas não tinham era o que chamamos de desenvolvimento socioemocional: um ambiente social estimulante que as ensinasse competências essenciais como foco, autorregulação e empatia.
Nós não nos lembramos, mas não nascemos sabendo focar nossa atenção. Quando somos pequenos, não sabemos escolher entre todos os estímulos que recebemos, e absorver o conteúdo do mundo é como tomar água em um hidrante. Quem nos ensina sobre o que merece nossa atenção são nossos cuidadores – para onde eles olham, também aprendemos a olhar, o que chamamos de “atenção compartilhada”. Também não nascemos sabendo lidar com nossas emoções: simulamos o que percebemos das pessoas ao nosso redor e, se estimulados a fazê-lo, podemos aprender a lidar com nossas próprias frustrações e nos acalmar sozinhos. Também não nascemos sabendo o que é um rosto e o que são as emoções: aprendemos a ler os rostos das pessoas ao nosso redor. As crianças dos orfanatos romenos apresentaram, ao longo dos anos, defasagem na capacidade de expressão e deficiência cognitiva decorrentes da falta de domínio da atenção e da capacidade de autorregulação. A observação dos órfãos na Romênia tornou possível estabelecer uma relação direta entre a negligência socioemocional e a deficiência no desenvolvimento cognitivo infantil, apontada pela neurocientista PhD Lisa Feldman, autora de Seven and a Half Lessons About the Brain.
De forma análoga, diversos outros estudos também comprovam que a exposição de crianças e adolescentes a programas estruturados de aprendizagem socioemocional influenciam positivamente seu desempenho acadêmico e até mesmo sua saúde. Apenas para citar alguns: um estudo publicado em 2019 pela Universidade de Tianjin, na China, investigou o impacto de programas de aprendizagem socioemocional considerando mais de 7 mil alunos de quarta e quinta séries. Segundo os pesquisadores, a competência socioemocional previu positivamente o desempenho acadêmico dos alunos (incluindo leitura, matemática e ciências), a prevalência de suas emoções e atitudes, incluindo ansiedade e interesse de aprendizagem, bem como a qualidade de suas relações interpessoais.
Em 2015, a Universidade de Columbia publicou o estudo The Economic Value of Social and Emotional Learning, atribuindo valor econômico ao impacto auferido por programas de aprendizagem socioemocional. Segundo os pesquisadores, essas competências não somente explicam a melhora no desenvolvimento cognitivo, mas também a qualidade de vida de uma forma geral. Estima-se que para cada US$ 1 investido em aprendizagem socioemocional estruturada, US$ 11 sejam retornados à sociedade na forma de redução do uso abusivo de álcool e drogas, índices de violência e menor ocorrência de problemas de saúde associados ao desequilíbrio emocional, por exemplo. Poderíamos pensar, no longo prazo, até mesmo em aumento de produtividade e diminuição de incidência de burnout nas empresas.
Para quem trabalha com educação ou tem filhos, a pergunta correta, portanto, não é “matemática ou empatia?” Ao inserir metodologias estruturadas para o desenvolvimento de competências socioemocionais nos currículos das escolas, jamais deveríamos cair no viés binário e achar que isso é uma escolha que prejudica o desenvolvimento cognitivo dos alunos, uma opção por “emoção” em detrimento da “razão”. Ao contrário, competências socioemocionais como autorregulação e capacidade de foco e atenção são a base de um aprendizado efetivo e impulsionam o desenvolvimento e, portanto, o desempenho dos alunos em todas as disciplinas. Ainda mais importante do que isso, elas são essenciais para que as crianças possam desfrutar de uma vida realmente equilibrada e plena.
Nosso cérebro é uma rede de 128 bilhões de neurônios e as conexões que ativamos são as que moldam nossas vidas. Se há uma escolha a ser feita, ela me parece bastante óbvia: queremos ou não queremos dar o melhor repertório para nossas crianças?
Flávia Sato é diretora de Pesquisa de Desenvolvimento da Academia Soul, pós-graduada em Mindful Leadership pela New York University, pós-graduada em Gestão Emocional e associada do IFL-SP.
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