Nelson Rodrigues, brilhante dramaturgo, costumava dizer que subdesenvolvimento não se improvisa. É uma obra de séculos. A existência intelectual, política e cultural do Brasil, grosso modo, pode ser sintetizada na antropofagia de Oswald de Andrade: importamos, mas não aplicamos sem nosso ziriguidum. O funk de James Brown foi velado por MC Livinho e seus comparsas. O movimento literário romântico fez de uma aventura nos trópicos uma narrativa medieval e pouco bronzeada. Turistas italianos são ofendidos diariamente pelos cardápios das pizzarias do Brasil. Strogonoff, sorvete ou banana? Cazzo! Afinal, qual outra colônia teve seu brado de independência dado de cócoras por seu libertador? Dom Pedro, regressando de suas viagens extraconjugais, era atormentado por desordens intestinais, quando, apoiando-se em sua mula real, declarou a cisão com Portugal. Há incontáveis episódios com tonalidades surreais tão intensas como o citado acima. A fundação republicana tupiniquim foi fruto de um golpe militar, no qual não houve qualquer apoio popular. O Brasil inventou a república autoritária, a República da Espada. Recentemente, a nação foi premiada com Dilma Rousseff e sua brilhante retórica.
Perceba, caro leitor, que há um arraigado complexo de Gabriela no brasileiro, um verdadeiro sobrevivente, mas feliz, resignado. Ri-se para evitar o choro de sofrimento, de impotência, de abandono. O brasileiro é um feriado, diria novamente Nelson Rodrigues. Pior, há quem acredite que a redemocratização e a Constituição Federal de 1988 foram frutos de um espírito de mudança irrefreável. 1964 não está em discussão, mas sim sua herança. O Brasil tornou-se uma República Federativa, mas não é república, nem sequer federação.
Hoje, o inevitável foco é o STF, sua politização e seus desmandos. Os sintomas dessa diagnose nunca foram tão palpáveis e dolorosos como contemporaneamente
Vale esclarecer: o ideal republicano surgiu como uma preocupada tentativa de estruturação política que impedisse concentrações de poder e governos tirânicos. A percepção de Hobbes – o homem é seu próprio predador – provou-se verdadeira em incontáveis exemplos: de César, em Roma, ao soviético Josef Stalin. De Aristóteles a Montesquieu, a temática esteve sempre presente em acalorados debates e complexas formulações. Indiscutivelmente, a mais bem-sucedida implementação dos ideais republicanos materializou-se na construção social e política dos Estados Unidos da América. Com um complexo sistema institucional de pesos e contrapesos, os americanos permanecem intocados por tiranos desde sua concepção. Trata-se de um inteligente sistema que, contrariando o senso comum, não é democrático. Pretendo tratar do assunto no futuro, mas desde já polemizo: república e democracia não coexistem.
Neste ponto, retomo a aflição prometeica tupiniquim. Em 1988, entrou em vigência a atual Constituição, famosa pela alcunha de "cidadã", uma das mais nocivas invencionices do país. Um documento dúbio, e que fundamenta o pavoroso sistema político contemporâneo. Trata-se de um falho e ineficaz documento.
Isso, todavia, não é novidade. Fernando Collor, primeiro presidente eleito sob as normativas do documento, teve o mandato e os direitos políticos cassados por um impeachment essencialmente político e midiático. Nada mais simbólico. O que é recente, todavia, e é motivo de preocupação, é a disfuncional atuação do Judiciário – mais especificamente, do STF e seus magistrados militantes. Em um sistema republicano, a independência do escrutínio eleitoral do Poder Judiciário e sua suprema corte tem como pressuposto a atuação idônea de seus membros, mesmo na contramão da opinião pública.
Em teoria, parece funcional, mas não é o exercício jurídico que o STF tem desempenhado. Seus quadros transmitem a sensação de imunidade ao peso da lei e da ética. Suas togas elevaram-nos ao Olimpo candango. Alguns nem sequer possuem currículo para integrar a corte. Outra mazela de 88: o Executivo indica um nome, o qual deveria ser criteriosamente sabatinado pelo Senado, que tem poder de veto. Entretanto, o lado azul do Legislativo trata o processo como uma formalidade, além de uma ocasião oportuna para ganhar capital político com o governo federal. Dias Toffoli, por exemplo, hoje presidente da corte, foi reprovado nos concursos públicos que prestou para a magistratura. Inúmeros países, contudo, adotam o mesmo modelo; o que muda é o filtro. Um indivíduo como Toffoli jamais passaria por uma sabatina no Senado americano. O modelo é falho.
Tentou-se emular, pelos constituintes, a social-democracia europeia, mas ainda em um contexto de influência das ideias socialistas. Em vez de delimitar o papel do Estado e reafirmar a inviolabilidade de liberdades individuais oriundas do direito natural, ganhou vida um documento verborrágico e garantista, impregnado de paradoxos e axiomas. Concentraram-se em Brasília poderes abusivos. A própria concepção da capital candanga distancia seus governantes dos governados. Há 30 anos em vigor, a disfuncionalidade daquele processo é translúcida. O esgotamento do modelo é nítido.
Hoje, o inevitável foco é o STF, sua politização e seus desmandos. Os sintomas dessa diagnose nunca foram tão palpáveis e dolorosos como contemporaneamente. Há contornos esquizofrênicos: a Justiça brasileira não julga, mas legisla, contradiz jurisprudências – muitas delas estabelecidas pelos mesmos juízes que as violam – e interfere nos outros poderes, e em prol de amigos e aliados. Tresloucados, os ministros cogitam validar provas obtidas de forma ilegal. Reitero: provas obtidas por criminosos e por vias ilegais. Não obstante, o absurdo da questão que envolve delatores e delatados. E não há vergonha alguma entre os magistrados, pelo contrário. Gilmar Mendes age como um coronel de toga, Dias Toffoli age abertamente para favorecer protegidos, culminando com as censuras e o notório abuso de poder de Ricardo Lewandowski (sim, ministro, o Supremo é uma vergonha, me prenda!). Um bacanal de invejar Calígula e Oscar Maroni. A insegurança jurídica criada inviabiliza qualquer recuperação econômica. Como investir em um país assim?
Aparentemente, as togas da Praça dos Três Poderes transformam homens em deuses. Ou esquizofrênicos. Costa e Silva e Médici devem, em algum lugar, estar às gargalhadas. Ao brasileiro, as batatas, memes e antidepressivos. Alexandre de Moraes tem, regimentalmente, de se sentar na corte no lado contrário ao sol. Não há cabeça mais brilhante em Brasília.
Marcos Paulo Candeloro é historiador, cientista político e consultor na plataforma Revelagov.
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