O Brasil não pode parar as chuvas, mas pode evitar a tragédia que elas provocam se realizar uma desconcentração de sua população. E o nome disso é desmigração
A tragédia do Rio não teria acontecido se não fossem causas naturais; as chuvas não teriam provocado tantas mortes, nem tantos estragos físicos, se as casas não estivessem em locais reconhecidamente perigosos; ou se as encostas estivessem protegidas; nem a tragédia teria sido tão grave se tivéssemos um sistema eficiente de Defesa Civil capaz de alertar e mobilizar a população. Pode parecer menos claro, mas as chuvas não teriam provocado a tragédia se não fosse a supermigração das últimas décadas do campo para a cidade.
Em 1960, a população do Brasil se dividia entre 54,92% vivendo no campo e 45,08%, nas cidades. Em apenas 50 anos, em 2010, a população se dividia em 83,96% nas cidades e 16,03% no campo.
A tragédia é consequência do excesso de chuva, da insuficiência de engenharia, descaso social, estrutura urbana, ineficiência da Defesa Civil, mas também de uma causa histórica: a falta de políticas públicas orientadas para quebrar as desigualdades regionais que terminaram provocando a supermigração brasileira.
Essa supermigração levou a população a construir suas casas em terrenos sem títulos de propriedade, quase como acampamentos feitos de tijolos nas encostas de morros. Cabe lembrar que a própria palavra favela tem origem nos acampamentos de escravos e ex-escravos fugidos do campo.
Esse movimento migratório foi o resultado de duas forças: aquela que expulsava moradores do campo, por falta ao mesmo tempo de reforma agrária, descaso com obras e serviço público nas pequenas cidades; e aquela que atraía mão de obra para as cidades como resultado das promessas da industrialização. No início, a falta de mão de obra fez com que muitas fábricas chegassem a construir vilas industriais para seus trabalhadores. Com a supermigração, isso deixou de ser necessário, pois os trabalhadores sem emprego fixo passaram a buscar habitação nas áreas sem dono, apesar da dificuldade de acesso e do risco. As terras devolutas foram ocupadas, sem investimentos e sem cuidados.
Nacionalmente, podemos fazer muito pouco para impedir as mudanças climáticas. No entanto, podemos e somos obrigados a enfrentar o problema. É urgente que todo o Brasil enfrente as consequências dessa crise específica. Porém isso não bastará. É preciso definir e executar regras para a ocupação do solo, usar a engenharia para proteger os locais onde possa haver um risco controlável e também tornar eficiente o sistema de Defesa Civil. Precisamos, acima de tudo, cuidar das causas mais profundas: a raiz da tragédia que é a supermigração nacional.
Além de todos os cuidados e políticas para enfrentar o problema do momento, com medidas de urgência, a tragédia precisa provocar políticas de freio à migração e até mesmo de desmigração.
A desmigração consiste em políticas públicas que, em primeiro lugar, promovem a expulsão da população do campo e das cidades pequenas. Hoje nossas políticas públicas de investimentos em educação, saúde, emprego, microcrédito, água e esgoto dão preferência às cidades grandes, porque elas têm mais eleitores. É preciso reverter essa preferência que abandona as pequenas cidades e provoca migração. Investimentos em cidades menores melhoram a vida de sua população e diminuem os problemas da população das grandes cidades.
Em segundo lugar, faz parte do esforço de desmigração executar políticas que incentivem a população das grandes cidades a retornar a cidades menores. A construção de infraestrutura e a oferta de incentivos levarão as indústrias a preferir investir em pequenas e médias cidades. Essa atração seria maior se os programas Bolsa Família e Saúde da Família, as obras urbanas e o atendimento hospitalar fossem utilizados como ferramentas públicas voltadas a criar atratividade nas pequenas cidades.
O Brasil não pode parar as chuvas, mas pode evitar a tragédia que elas provocam se realizar uma desconcentração de sua população. E o nome disso é desmigração.
Cristovam Buarque é professor da UnB e senador pelo PDT do DF.