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A admoestação remonta há 65-8 a.C. e vem da Sátira, de Horácio: "Há uma medida nas coisas, existem afinal certos limites". Especialmente naqueles que provisoriamente podem ser chamados reinos da realidade e do sonho, os quais desde sempre têm ocupado um bocado nada desprezível do melhor dos pensamentos humanos. De tal ordem tem sido essa polêmica, que vem lançando a modernos e pós-modernos o desafio do confronto e da compreensão. O filósofo taoísta Zhuang-Zi, que viveu no século IV a.C., legou à posteridade um exemplar apólogo sobre a experiência onírica que teve. Característica daqueles que vivem inquietos em seu propósito de interpretar o real.

Zhuang-Zi sonhou que era uma borboleta e ficou feliz com a nova condição que adquirira, ignara de ser filósofo. Porém, ao acordar repentinamente, percebeu extasiado que era Zhuang-Zi. Ficou, então, sem saber se era uma borboleta que sonhara ser filósofo, ou se era um filósofo que sonhara ser borboleta. Este apólogo, de grande repercussão no mundo das idéias à época, encontrou excelente correspondente ocidental em "A vida é sonho", de Calderón de La Barca. Ambos os relatos podem ser interpretados como valiosos testemunhos do caráter de indivisibilidade do real, ou seja, como prova da instabilidade dos limites. E do caos daí advindo.

O sonho, sabe-se, não raro provoca uma ação corrosiva sobre a percepção e a concepção que se tem do real. Este é um termo que não deve ser empregado facilmente em significações unívocas. No âmbito do senso comum, todavia, pode ser chamado de realismo ingênuo. A Realität, definida por Kant em "Crítica da razão pura", ilustra esse conceito. As coisas reais são sólidas; os sonhos, abstratos. Elas ocupam espaço definido enquanto que o deles é evanescente, fugidio, flutuante e fugaz. Por que, então, a confusão entre os respectivos limites? Descartes assegurou que "as fantasias enganadoras surgidas no sonho são destituídas de realidade".

Freud, sob o signo da realização de um desejo inconsciente; Jung, sob o de uma compensação da vida consciente; e Adler, sob o de um reforço da ficção, relataram diferentes modos da realidade do sonho. Da forte tangência dessa experiência sobre a vida humana e da impostergável necessidade de se ter bem claros os limites entre uma e outros. Há quem diga que o objetivo dos sonhos é o de não serem mesmo compreendidos "in totum". Aos que crêem, eles são mandados por Deus em visões, intuições e até sob forma de diálogo entre Criador e criaturas. Um Deus nunca enganador. Embora possam manifestar mais de um significado, nas imagens oníricas pulsam emoções, associações, lembranças, anseios, enfim, a complexa narrativa da própria vida, passada, presente e futura.

Mesmo que somente multiplicadores da realidade, os sonhos e as conseqüências deles dependem da atitude do sonhador, que precisa recuperar "os pés no chão" para bem tratar com a realidade. Crimes bárbaros, uso do nome de Deus em vão ou em visível proveito próprio, utilitarismo, banalização da vida e da morte, todos componentes do atual caos mundial e brasileiro, contêm a semente destruidora da perda dos limites morais e éticos. Prega-se numa língua, argumenta-se nela, é usado um dialeto próprio na ação, exatamente o contrário do antes enaltecido. Na babel em que se transformaram o Congresso Nacional, os muitos Executivos e alguns cantões do Judiciário, estão os germes do egocentrismo, da luxúria, da soberba e da ganância. Maus parceiros para discernir limites e a realidade.

Pasmo, o senso comum de todas as faixas sociais assiste à inversão de valores, à dança erótica dos ocupantes de nacos do poder, dos iludidos por este. Se as panelas estão no fogo e as barrigas já não tão vazias, a sede por justiça está mais disseminada. Por que se vota num candidato, se sonha com um novo líder, e se cai na real quando o mesmo exerce o poder? Errou-se no sonho ou na leitura da realidade? A verdade é que ninguém, absolutamente ninguém, queria o que Tom Jobim definiu como "é a lama, é a lama, é a lama". Ou seja, a absoluta predominância de uma realidade nefasta que, a cada dia, mais impede o anseio de um sonho compensador.

Alzeli Bassetti é tradutora e intérprete.

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