No dia 20 de março de 2022, o governo anunciou que o Brasil seria o primeiro e único país do mundo a ter um mercado de créditos de metano. A lógica seria similar ao mercado de carbono que tanto é alardeado fora e dentro do Brasil: uma “moeda” seria criada para compensar emissões do gás, em busca de uma redução líquida na qual haveria um incentivo geral para a redução de emissões, especialmente com a troca de diesel por biogás e biocombustíveis em geral.
Nesta mesma esteira, no dia 19 de maio, foi publicado o Decreto 11.075 que estabelece os procedimentos para elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação de Mudanças Climáticas e institui o Sistema Nacional de Redução de Gases de Efeito Estufa – SINARE. O que à primeira vista parece uma grande conquista para o combate às mudanças climáticas dá sinais de uma estratégia preocupante do governo para lidar com o mercado de emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Há considerações comerciais, econômicas e jurídicas que explicam por que não há mercados fragmentados em nenhum lugar no mundo, inclusive em países nos quais o assunto é muito mais debatido do que no Brasil.
Economicamente, quanto menor o mercado, menos líquido ele é. Com isso, menos investidores generalistas têm interesse em acessá-lo graças à preocupação de não conseguirem vender seus ativos. Os mercados que atraem os maiores volumes de investimento não são os mercados restritos, mas sim aqueles mais amplos nos quais os investidores, pequenos, grandes ou institucionais, podem diversificar sua exposição ao risco. Também são gerados mais custos de transação quando há diversos pequenos mercados ao invés de um grande mercado.
Por exemplo, uma propriedade que reduz tanto metano quanto dióxido de carbono poderia ter de certificar cada redução em um órgão ou entidade diferente, com regras e requisitos diversos, a depender do Plano Setorial. Técnicas sustentáveis no agronegócio como a integração lavoura-pecuária-floresta (IFLP) seriam desincentivadas se uma propriedade precisasse se adequar a diversos Planos Setoriais para integrar a lavoura com a pecuária e manejo florestal.
Comercialmente, quanto mais específico for um mercado, mais difícil é a comercialização internacional do seu produto em mercados padronizados. Toda a discussão da COP 26 sobre os mecanismos do artigo 6º do Acordo de Paris, que foi duramente debatido por mais de 15 anos, foi crucial para chegar a uma proposta de mercado de “Carbono Equivalente (CO2eq)” exatamente para simplificar a “moeda” que seria usada no mercado global. Não à toa, as duas principais certificadoras do mercado voluntário, Verra e The Gold Standard, usam CO2eq para calcular emissões. O fato não passou desapercebido pelo Brasil, tanto é que o próprio ministro do Meio Ambiente pontuou em suas entrevistas que já há um cálculo para quantas toneladas de carbono são neutralizadas com uma tonelada de metano. Então por que criar uma nova moeda única e exclusiva brasileira de metano ou fragmentar a discussão em diversos Planos Setoriais?
De acordo com um estudo do Centro de Liderança Pública (CLP), a simples existência das florestas públicas brasileiras poderia render pelo menos R$ 120 milhões ao país a cada ano caso o governo liberasse a comercialização de créditos de carbono nos contratos de concessão federal dessas áreas. O montante é o mais modesto levantado pela organização com base em um projeto de lei que prevê a inserção dos créditos de carbono na modalidade. No cenário mais otimista, a cifra sobe para R$ 1,4 bilhão ao ano.
Não obstante os graves problemas de conteúdo econômico e comerciais mencionados acima, as duas peças legislativas trazem consigo riscos formais e técnicos que podem inviabilizar a sua existência, desmotivar os agentes e ainda prejudicar todas as iniciativas voltadas à compensação de emissões de gases de efeito estufa (GEE).
O movimento de criação dessas normas foi feito através de regulamentação infralegal, não tendo peso de lei e, por isso, não carrega a força legislativa de um instrumento que pode atravessar gerações, garantindo segurança jurídica aos envolvidos. Um exemplo de sucesso que poderia ter sido seguido ao menos formalmente seria o RenovaBio. Promulgado através de lei, o RenovaBio é o único mercado regulado de carbono no Brasil. Sua solidez advém do fato de que foi cristalizado na Lei 13.576 de dezembro de 2017. Não à toa, mudanças de governo não colocam em risco os créditos que foram comercializados. No caso deste “Mercado Regulado” ou o “Mercado de Metano”, sua criação de supetão, sem muito debate nem aviso, foi gestada no Executivo, sem discussão ampla nem aval dos demais poderes e pode ser revogada com a mesma agilidade.
Isso nos leva a um segundo problema ainda mais grave do ponto de vista de segurança jurídica: um mercado fragmentado vai diretamente contra as iniciativas que estão em tramitação no Congresso.
Na Câmara dos Deputados há um projeto que junta quatro proposições sob o número PL 2.148/2015 e trata do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE). Sua contrapartida no Senado é o PL 412/2022. Os dois projetos têm muitas diferenças entre si, porém, ambos tratam não de carbono, mas sim de “gases de efeito estufa (GEE)” ou “carbono equivalente (CO2eq)”, termo que inclui metano e outros gases.
Caso qualquer um dos dois projetos de lei passe, automaticamente os decretos federais passariam a ser parte do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE)e, invariavelmente, surgirá uma discussão sobre o que fazer com os créditos que foram gerados antes. Na melhor das hipóteses, os programas alardeados em março e maio são natimortos. No pior, é uma bomba de insegurança jurídica esperando para estourar.
Mas nem tudo é perdido. A definição de “o que é um crédito de carbono” também é uma boa mensagem a todos os agentes envolvidos, bem como todos os lastros listados para emissões de créditos. As ideias não são ruins e a sinalização é ótima. Porém, a forma como foi feito deixa dúvidas sobre a eficácia do que está proposto, além de criar riscos substanciais do ponto de vista jurídico, econômico e comercial dos eventuais créditos gerados.
A solução seria o assunto avançar rapidamente no Congresso, e o mercado regulado por lei se consolidar antes que os agentes se movimentassem sobre a atual regulamentação frágil e o mercado seja fragmentado. Não obstante, os otimistas apontarão que não havendo consenso sobre o modelo de mercado regulado, os investidores terão de seguir apostando na força do mercado voluntário de carbono, que ganha volume no Brasil todo ano há mais de uma década.
Mario R. A. Lewandowski é economista, ex-assessor especial do Ministério do Desenvolvimento Regional e diretor da AGBI Ativos Reais.