Isolada do resto do governo, a recente deriva da política externa não parece fazer muito sentido. Por que afagar o Irã e hostilizar a Colômbia? Por que tentar constranger Obama como réu em encontro da Unasul e armar o circo da embaixada em Honduras?
As fichas começam a cair quando se constata que, de oito meses para cá, o governo se empenha em sistemática afirmação de uma identidade própria. Ficaram para trás os incertos tempos do começo do primeiro mandato. Mesmo a contragosto, o presidente tinha então de resignar-se aos elogios ambíguos de que só acertava porque dava continuidade à obra do antecessor.
Forte, agora de popularidade inabalável, inebriado pelo êxito contra a recessão e o aplauso internacional, Lula vê chegada a hora de imprimir à sua herança marca pessoal inconfundível. Se a privatização se tornou a ideia-força de Fernando Henrique Cardoso, o retorno do Estado e a criação de nova estatal para o pré-sal darão o tom do governo atual.
O pré-sal e a crise financeira fornecem as duas oportunidades para justificar a descontinuidade em relação ao período anterior. O primeiro permite revogar toda a política de concessões, leilões e reforma da Petrobras. De sobra, promete recursos para viabilizar o fator previdenciário, a consolidação dos programas sociais contra retrocessos, a redução da semana de trabalho.
A crise fez do pecado de gastar uma virtude redentora. Legitima arquivar em definitivo a receita vinda de Palocci e Delfim para aumentar o superavit primário até zerar o deficit nominal. A nova política econômica, que mercados financeiros e agências de risco confundem com a antiga, consiste no crescimento puxado pelas despesas do governo e o consumo de massa.
Até os leilões de rodovias federais, que serviram para projetar a candidata oficial, tornaram-se vítimas do temor da detestada privatização. As Parcerias Público-Privadas, de que se falou tanto, foram juntar-se ao Fome Zero, ao Primeiro Emprego, ao etanol talvez, no cemitério dos slogans abandonados. Os heróis do agronegócio terão de exercitar o heroísmo cumprindo os índices de produtividade desejados pelo MST.
Fiquemos por aqui. A cara definitiva da era Lula não é a dos amargos cortes da gestão Palocci. O presidente se sente bem mais à vontade banhado no suculento caldo de benesses que lhe assegure, como admite, um lugar ao lado de Vargas no panteão dos benfeitores.
Para isso, já reconstituiu a velha e provada aliança das massas urbanas com as chefias tradicionais, do PT-PTB com o PMDB-PSD. Afinal, basta deslocar umas poucas letras...
Não se trata apenas do desejo de emancipação da tutela do passado governo, do anseio da glória própria. Como preparar melhor a iminente campanha sucessória do que oferecendo ao eleitor a possibilidade de uma escolha nítida entre dois projetos de país? Se a oposição não quiser se associar ao do passado recente, terá de construir uma visão de futuro com apelo para neutralizar a formidável multidão dos pequenos e grandes que dependem não do setor produtivo privado, mas das transferências e rendas do Estado.
A diplomacia é um dos elementos que se encaixam nesse conjunto. Para quem acha que algumas dessas mudanças não fazem sentido, é bom lembrar a reação de Polônio ao desvario de Hamlet: embora seja loucura, existe nela boa dose de método.
Rubens Ricupero é diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo. Foi secretário-geral da Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento e ministro da Fazenda. Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna. rubric@uol.com.br
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