O presidente da República, Jair Bolsonaro, participa de cerimônia em comemoração ao Dia do Soldado, no Quartel-General do Exercito.| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
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O primeiro mandatário do nosso país inúmeras vezes declarou que o sistema eletrônico de votação não é confiável. Recentemente ele afirmou que sem o voto impresso não haverá eleição no ano que vem, ou que ela poderá vir acompanhada de tumultos. Tal ameaça foi vigorosa e amplamente rechaçada. Alguns deputados de sua base, também adeptos da desconfiança, resolveram atuar a favor desse tipo de voto, mas não conseguiram alcançar o intento desejado por falta do apoio de outros parlamentares.

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Pelas falas pronunciadas, o atual ministro da Defesa demonstrou igualmente a preferência por esta forma de sufrágio. Entretanto, há algumas semanas, segundo o jornal O Estado de S.Paulo, o referido ministro transmitiu ao presidente da Câmara dos Deputados, por meio de um intermediário, uma mensagem cujo conteúdo versou sobre o condicionamento da eleição vindoura ao emprego do voto impresso. Houve tentativa de ambos em desmentir a existência do ocorrido, mas a descrença se alastrou. Em depoimento aos deputados, ele não confirmou a entrega da mensagem.

Assim como aconteceu na nota dirigida ao senador Omar Aziz, presidente da CPI da Covid, apareceram imediatamente as reações: o brasileiro vai julgar seus representantes em outubro do ano que vem por meio do voto popular, secreto e soberano; a realização de eleições periódicas, inclusive em 2022, não está em discussão, isso é inegociável; é lógico que haverá eleições, não somos república de bananas; as decisões sobre as eleições de 2022 cabem ao Congresso e à Justiça Eleitoral; a Câmara tem de aprovar a convocação do general pretendente a ditador; nossa democracia não vai ser ameaçada por ninguém; não toleraremos qualquer aventura golpista.

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Cabe lembrar que o envolvimento de militares em processos eletivos não é específico do Brasil. Em 2007, na Turquia, a eleição de Abdullah Gul, membro do movimento islâmico, à presidência levou o Estado-Maior das Forças Armadas a emitir uma nota que revelava a contrariedade dos fardados. Atualmente, nos Estados Unidos, vem ocorrendo o emprego do US Cyber Comannd na segurança eleitoral. Muitos estudiosos do assunto já se manifestaram contra a iniciativa porque ela pode prejudicar a liberdade de expressão, abalar a suposta reputação apolítica dos militares e interferir nas relações entre eles e os civis.

Em nosso país encontra-se inscrita na história a relação dos servidores fardados com as eleições. O início talvez se encontre em 1891, quando a Constituição republicana proibiu o voto de soldados rasos. Na década de 20 do século passado, o movimento tenentista defendeu a institucionalização do voto secreto. Em 1930, após a intervenção militar, ocorreu um processo de reforma eleitoral, porém mais adiante a Justiça Eleitoral foi extinta, os partidos políticos foram abolidos e as eleições, suspensas. A ditadura civil-militar de 1964 estabeleceu a proibição do voto direto. No ano de 2018 emergiram a pressão do general Villas Bôas sobre o STF e a mobilização de hostes castrenses, tendo à frente o partido verde-oliva, a favor do venerado mito. Mencione-se ainda a contribuição dos fardados à construção da urna eletrônica, bem como o fornecimento de suporte e de segurança por parte deles aos escrutínios nacionais.

O episódio mais recente é o do ministro da Defesa. Tal como aconteceu no caso do senador Omar Aziz, a manifestação mais repetida foi a de rechaçar um possível golpe com o apoio das Forças Armadas. É interessante observar que aqueles que falam em golpe tendem a levar em conta as intervenções militares do passado, inclinam-se a não considerar as mudanças ocorridas no transcorrer do tempo e as condições objetivas do presente. Não têm em mente possíveis óbices internos da corporação bélica, tais como a justa desobediência a ordens absurdas ou ilegais, cujo exemplo é a negação da revoada de jatos sobre o STF; a resistência a aventuras autoritárias; e a inexistência de um inquebrantável alinhamento ideológico revelado pela manifestação de constrangimento de aquartelados devido ao triste desfile de blindados em Brasília, alardeado por muitos como o início do golpe e não como uma tentativa de intimidação, de demonstração de força, e que de fato foi uma exibição de fraqueza do infausto presidente, o qual, sem abandonar o estilo ferrabrás, ensaia a adoção de uma nova estratégia baseada no acolhimento de medidas populares.

Quem aponta a iminência de golpe subestima, também, o discernimento dos servidores fardados. Adeptos fiéis do pragmatismo e do consequencialismo, eles sabem muito bem que o Brasil enfrenta diariamente o emaranhado das relações internacionais, em que qualquer tentativa de desvio de conduta pode acarretar sequelas danosas: isolamento político, diplomático e econômico; suspensão de projetos de cooperação; sanções contra integrantes do governo; e bloqueio de repasses de fundos multinacionais.

Caso tenha realmente acontecido a transmissão dessa censurável e antidemocrática mensagem, é aceitável supor a existência de outros motivos. Podem ser citados a adesão às concepções bolsonaristas, a não aceitação de uma vitória de Lula, a preocupação com uma provável situação social conturbada no ano vindouro cujas Forças Armadas poderão ser chamadas para atuar, a um autoconceito superestimado. No entanto, segundo juristas, é imprescindível a abertura de uma investigação para apurar os fatos e, se ficar provado que o recado efetivamente chegou ao destinatário, o chefe da Defesa deve ser processado e punido de acordo com o que se encontra previsto em lei.

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Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea com pós-doutorado em Educação, e autor de “Democracia e Ensino Militar” e “A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania”.