No último domingo, de bastante sol e muita saudade, parentes, amigos e admiradores de Sérgio Mercer reuniram-se no Memorial de Curitiba para lembrar a gloriosa passagem entre nós do "afinador de conversa" e operário da imaginação rutilante.
Foi uma espécie de missa de alma presente, tomando às avessas a liturgia religiosa quando a cerimônia é realizada perante o cadáver. A missa, para lembrar o Mercer, deveria ser fiel à etimologia da palavra latina: deixar ir, partir, soltar, largar, lançar, atirar.
Pois não era ele mesmo quem deixava ir a rotina do cotidiano e partia com as "criações que derramou sobre a Fundação Cultural de Curitiba, que presidiu entre 1979 e 1983", como disse a jornalista Maí Nascimento Mendonça?
O irmão, José Luiz Mercer, agradecendo em nome da família as orações e oferendas, disse muito bem: "É expressivo que esta espécie de ação de graças se dê num território muito caro ao Sérgio, neste trecho de uma república alegríssima, onde, em tempos heróicos, impetuosos corcéis se dessedentavam no Bebedouro e vinham repousar no Meio-Fio, sob o pavilhão altaneiro da Fundação Cultural de Curitiba.
O Sérgio não se enquadra nas categorias convencionais das figuras a quem se presta homenagem. Não era político nem jogador de futebol. O Sérgio nos marcou foi pela permanente graça do espírito, que distribuía na forma de humor, criatividade, ilustração e agudeza de percepção. Esses atributos levaram-no a destacar-se em três domínios: a publicidade, a política cultural e a conversa".
Por acaso não era também o Mercer quem soltava a imaginação como lembra Jaime Lerner? "Afinador de conversa, condutor de orquestras, jazz-bands, arranjador e exímio tocador de um bandônion imaginário. Mercer foi meu herói e amigo leal. Implacável contra a mesquinhez, a mediocridade e a preguiça e generoso com o talento, a imaginação e a criatividade, Mercer tinha a coragem de ir contra as idéias recebidas e não aceitava o que não tivesse o tempero da inovação".
O Almir Feijó disse que ele deixava ir o moderno para ficar com os discos de vinil. "Continuava fã. Tinha milhares em casa, de todos os gêneros. Eu, quando ia a São Paulo, desembarcava direto no Museu do Disco e sempre trazia um presentinho para ele".
O Barão de Tibagi, que escreveu deliciosas crônicas sobre bares, restaurantes e prazeres da mesa, que compôs músicas e sátiras de todos os tipos, como conta o Ernani Buchmann, tinha uma eterna juventude. "Eu me lembro que o Mercer lidava muito bem não só com as letras, mas também com os números". "No baile dos 50 anos [arremata Manoel Carlos Karam], me lembro, ele tinha 20 e poucos".
Mas, além da imaginação, Sérgio entusiasmava os amigos com a vontade de conhecer. Tudo e sobre tudo. Marcos Braz lembra que já estava aí o bordão a ser usado com entusiasmo: "Toda força ao talento. Toda força às idéias".
Ele foi um campeão de frases aliciantes, recorda Jaime Lechinski: "Eu quero ser presidente", "Lixo que não é lixo", "Coração curitibano", e tantas outras.
Na reunião de domingo eu lancei a idéia de se criar a Academia de Bom Humor Sérgio Mercer. Ela poderá preencher o vazio da saudade e fazer do riso o melhor calmante para os momentos de ira, uma espécie de muralha contra a estupidez e "o festival de besteiras que assola o país" como fala o redivivo Stanislaw Ponte Preta. Tinha razão Beaumarchais: "Apresso-me de rir de tudo por medo de ser obrigado a chorar" (O barbeiro de Sevilha).
A Academia poderá instituir prêmios para o melhor projeto imaginário. "A imaginação governa o mundo", disse Napoleão. "É a imaginação, tocha divina apensa ao espírito do homem, que lhe permite mover-se nas trevas da criação", repetiu o nosso Joaquim Nabuco.
Agora, aqui e sozinho no meu canto, lembrando as orações da missa dos dez anos e sem ouvir o "bandônion" que Sérgio tocava para o delírio dos amigos, eu repito Dante Mendonça: "Sérgio Fernando da Veiga Mercer está nos fazendo uma tremenda falta".
Porque você sabia trabalhar muito bem com a imaginação para deixar ir, partir, soltar, largar, lançar, atirar...
René Ariel Dotti é advogado e professor universitário, membro da academia paranaense de letras.