Ainda envolvido pelas repercussões do grande escândalo da pedofilia, o Vaticano soube aproveitar magnificamente as oportunidades oferecidas para mediar a libertação dos 52 presos políticos cubanos. O cardeal cubano Jaime Orte­­ga aproveitou os laços especiais entre a ilha e a Espanha, providenciou rapidamente a transferência dos primeiros 11 encarcerados para Madri e teve a sensibilidade para atender às sugestões do governo de Havana e sondar os EUA na direção de uma atenuação do penoso embargo econômico.

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Enquanto crescem as pressões secularistas em todo o mundo ocidental e a Igreja Católica se vê pressionada para rever dogmas, procedimentos e clamorosos erros, o Estado católico tenta retomar venerandos anseios humanitários.

A troca, aparentemente paradoxal, é fascinante e extremamente positiva. Religião é matéria espiritual, eletiva, não pode imiscuir-se na competição política nem ameaçar soberanias, mas um Estado assumidamente teocrático tem o direito e talvez a obrigação de compartilhar além dele a mensagem de paz, tolerância e entendimento inspirada nas suas crenças e devoções.

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À medida que cresce a certeza de que a democracia representativa é – até prova em contrário – o melhor sistema de organização política, cresce também a convicção de que a religião, todas as religiões, devem recolher seus projetos hegemônicos e subordinar-se à noção igualitária e isonômica da sociedade civil.

O condicionamento das confissões religiosas ao âmbito pessoal e espiritual irá certamente liberar suas energias para missões superiores na direção do bem-comum e da convivência sobrepondo-se às competições partidárias e nacionalistas.

Convém lembrar que o movimento Ficha Limpa foi deslanchado pela CNBB (Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros) e adotado com entusiasmo por crentes e descrentes, independentemente de suas afiliações. Converteu-se numa cruzada pela decência que partidos tão encarniçados na disputa pelo poder dificilmente teriam a coragem de abraçar.

Esta visão da religião como ética é revolucionária, transcendental. Pode ser vista como perniciosa e até antirreligiosa – afinal, a busca da verdade leva eventualmente à anulação das verdades reveladas –, mas em compensação pode contribuir para amenizar as grandes brechas humanas e humanitárias que o extraordinário desenvolvimento tecnológico vai deixando no campo do espírito.

Todas as religiões foram revolucionárias, utópicas, nos seus primórdios e tornaram-se altamente repressoras em seguida. A preconizada aliança das civilizações para substituir a noção de um inevitável confronto das civilizações pode ser uma oportunidade para que as religiões transformem-se em fatores de aproximação.

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Por ser a mais globalizada e melhor organizada institucionalmente, a Igreja Católica tem mais traquejo e mais molejo para cumprir uma pauta missionária, digamos extra-religiosa, não-confessional. Tem simultaneamente uma portentosa carga histórica de perversidades, fanatismos e sectarismos que não podem ser minimizados ou esquecidos.

A missão em Cuba no exato momento em que tenta se penitenciar pelas máculas da pedofilia pode servir de inspiração para uma teologia do entendimento que não deveria perder de vista a vergonhosa onda de intolerância que uma Europa cristã, pretensamente ecumênica, não consegue controlar.

Alberto Dines é jornalista