Para muitos, mero cenário de telenovela; para outros, destino turístico onde se passeia de balão e, eventualmente, deles se despenca. Para poucos é o ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente onde está ocorrendo uma perigosa experiência de volatilidade política.
A Turquia é a herdeira direta do Império Otomano, um dos mais extensos e estáveis do Velho Mundo (623 anos) e que, em determinado momento, estendia-se de Gibraltar ao Mar Cáspio, na Ásia, e descia até o coração da África. Sede do mundo islâmico, seus califas, sultões e grão-vizires montaram um eficaz sistema de convivência multiétnico e multirreligioso que se impôs às diversidades e até hoje é estudado por politólogos e historiadores.
Da repente, alguém ou alguma circunstância aproximou um fósforo do barril de pólvora turco e o que parecia estabilizado e controlado está prestes a explodir. O previsível caminha rapidamente para o imprevisível e, o que é pior, está ao lado de outro barril de pólvora, enorme, mais perigoso e já detonado: a Síria.
O que aconteceu com o premiê Recep Erdogan, há dez anos no poder? Estava em conversas adiantadas para pacificar os rebeldes curdos; seu islamismo "moderado" parecia ainda mais contido pela necessidade de não agravar as desconfianças da União Europeia e, assim, facilitar sua adesão ao bloco. Recentemente aceitou as desculpas do governo de Israel pela interceptação de um comboio que levava suprimentos para a Faixa de Gaza e, mais importante, a cada dia aumenta a sua oposição ao ditador sírio, Bashar al-Assad.
Difícil acreditar que o incêndio turco tenha como causa única a reação dos ambientalistas contra a urbanização do pequeno Parque Gezi, em Istambul, ou mesmo as medidas governamentais para restringir o uso de bebidas alcoólicas, atendendo às pressões dos islâmicos mais radicais. São ainda cautelosas as manobras do premiê Erdogan para candidatar-se à Presidência e transformar a república num regime mais centralizado e forte; dificilmente poderiam ser apontadas como as responsáveis pelo atual terremoto.
Também não se deve descartar a possibilidade de uma interferência externa russa ou dos aiatolás iranianos para desestabilizar um país que assume um papel cada vez mais destacado na região. E contra os seus respectivos interesses.
O que efetivamente nos empurra em direção à situação turca é a sua inesperada volatilidade, a surpreendente reviravolta. É verdade que a mídia do país, embora não controlada pelo governo (como aconteceu em passado recente), faz exatamente o que interessa aos estrategistas oficiais e, assim, não se apressou em apontar os indícios de uma forte insatisfação. Apelos consumistas e a distração com mundanidades têm um terrível efeito deletério, são capazes de desativar ou atenuar legítimas revoltas e resistências.
Nada disso deve nos afastar da inquietação com a atual conjuntura mundial movediça, vocacionada para a trepidação e naturalmente inclinada para produzir surpresas. Confrontos entre índios e ruralistas acontecem há décadas; violentos protestos contra os aumentos das tarifas nos transportes públicos são ainda mais antigos.
O problema de hoje é que os pavios ficaram mais curtos e as cargas explosivas, mais disseminadas.
Alberto Dines é jornalista.