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Os mitos da superdotação e a educação especial

(Foto: Michał Parzuchowski/Unsplash)

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Este artigo explora as nuances e os desafios na identificação e compreensão da superdotação ao captar a essência de três erros aplicados no reconhecimento de superdotados – reflexos de uma visão reducionista e fragmentada –, destacando a necessidade de uma visão holística e integrada a respeito, além de desafiar preconceitos comuns e incentivar abordagens educacionais inovadoras.

“Se eu nunca vejo um avião caindo tendo a concluir que aviões não caem.” É famosa a história do matemático húngaro Abraham Wald que, durante a Segunda Guerra Mundial, descobriu um erro na análise de segurança dos aviões Aliados. Enquanto todos tentavam analisar as perfurações nos aviões que sobreviviam aos combates e refletiam sobre a melhor forma de reforçar a sua blindagem, Wald constatou que a amostra estava incompleta: era preciso analisar os aviões que não voltavam. Isso denota que tendemos a olhar as questões com visão reducionista, ignorando a história, os meios, o contexto, os estímulos aplicados.

A primeira verdade do superdotado é que ele, por ser único, não pode ser reduzido a um conjunto homogêneo

O erro do olhar fragmentado, ao contrário do que prega a Lei da Gestalt, é que ele leva ao raciocínio indutivo, julgando o todo apenas pela parte vista (a que cada um vê) e, assim, generalizando, dando como verdade absoluta aquilo que cada pessoa reconhece. Este comportamento reducionista compromete e prejudica a compreensão da superdotação, que é único em seu perfil e não apenas faz parte do “grupo de superdotados”.

Se eu apenas conheço os superdotados dos livros e autores de grandes obras na música ou na inovação, então concluo que todo superdotado deve criar uma obra genial (e na minha frente agora!). A criança superdotada de cinco anos já tem que ser um Mozart na música e aos 15 anos precisa criar uma teoria que supere a da Relatividade, de Einstein. É um mito pensar que se pode ver a superdotação. Muitas vezes, o que está sendo visto é o talento.

É claro que a ciência começa com observação, mas é preciso ter cuidado com a indução, a qual considera um raso número de casos particulares para concluir uma verdade geral. A primeira verdade do superdotado é que ele, por ser único, não pode ser reduzido a um conjunto homogêneo (o dos SDs – Superdotados), mas faz parte de uma população neurodivergente, especial e diversa. Isso permite afirmar que os superdotados, todos juntos, não são apenas de um tipo.

A segunda verdade é que ele possui a capacidade de aprender de forma distinta dos típicos. É infrutuoso e inútil pensar que é possível padronizar o processo de aprendizagem dos superdotados. Que tal aprender com os superdotados a capacidade de ter o seu próprio olhar sobre os fatos e poder desenvolver as suas próprias estratégias de aprendizagem?

Conceitos tomados separadamente, limitados (diferente de delimitados) e popularizados ficaram na moda, tornando-se superficiais, rasos e pouco profundos. Espectro, por exemplo, tem sido extensivamente usado para classificar uutismo. Está correta tal aplicação no campo do TEA, mas não para por aí. A extensão da aplicação é tão longa quanto a própria definição de espectro.

Quem é das artes visuais sabe que espectro é um gráfico, registro fotográfico ou visual de uma distribuição de quantidades observáveis ou propriedades dispostas segundo a sua magnitude. Quando, porém, falamos de espectro em física, estamos nos referindo à intensidade de radiação em função do comprimento de onda. Ou, ainda, no caso do espectro sonoro, no conjunto de todas as ondas que compõem os sons audíveis e não audíveis pelo ser humano. Na política, espectro político pode ser definido como o sistema que caracteriza e classifica diferentes posições políticas em relação umas às outras sobre um ou mais eixos geométricos. Tais aplicações são exemplos de delimitação do conceito de espectro, demarcadas por área, por território.

O que não podemos é limitar o conceito a uma área, banalizando-o, como se as camadas da terra ou da pele – apesar de saber que têm seus processos internos próprios – não interagissem entre si. E, da mesma forma como o autismo faz parte de um espectro e do grupo de inclusão, a superdotação, como a maioria das condições de inclusão, também é demarcada dentro de um espectro e nela observamos uma distribuição de diferentes níveis, tipos, características e graus de intensidade.

As pessoas tendem a selecionar alguns teóricos e usá-los como verdade absoluta, sem questioná-los e, inclusive, sem abrir a mente e a criatividade para compreender teorias concorrentes e complementares. Da mesma forma como na brincadeira do “telefone sem fio”, a informação apreendida de um único olhar teórico tende a se dissolver, se modificar e chegar ao receptor de forma razoável, superficial, ambígua e até mesmo equivocada. É mito pensar que o superdotado se encaixa nas características de uma teoria. Cada teórico estuda uma parte da realidade: daquela em que vive e a partir das suas próprias referências e conhecimentos aprendidos na vida. As referências e o conhecimento do teórico orbitam na sua vida e, também, na tese que ele irá construir.

As pessoas são diferentes umas das outras, o que faz com que cada uma tenha o seu próprio estilo cognitivo e aprenda de modo particular

Toda teoria, portanto, tem sua consistência, até porque sua função é sistematizar e organizar o conhecimento. Não é possível, porém, provar uma sentença inteira a partir de uma única teoria, já que diversas referências orbitam em torno de uma parte da verdade. Durante o meu doutorado ouvi muito que precisava de uma proposição para chamar de minha. Com o tempo passei a discordar e compreendi que temos uma área de conhecimento para trabalhar, mas as proposições podem ir se modificando à medida que testamos os conhecimentos adquiridos. Nossos valores não precisam mudar, contudo, podemos mudar nosso posicionamento, como em um jogo de tabuleiro.

As pessoas são diferentes umas das outras, o que faz com que cada uma tenha o seu próprio estilo cognitivo e aprenda de modo particular. Existem dezenas de classificações dos estilos de aprendizagem, dificultando o entendimento e a formulação de estratégias de ensino para os mais variados grupos de alunos. Essas variações envolvem desde crianças da educação infantil a adultos da pós-graduação, de escolas conteudistas a escolas construtivistas, de alunos típicos a alunos da educação especial, das escolas rurais e urbanas, das inúmeras disciplinas e de todos os níveis socioeconômicos. Adiciona-se a este cenário o fato de que o número de horas-aula é bastante limitado e que professores têm pouco tempo para planejar aulas e avaliar seus alunos.

Neste artigo foram fixados os estudos da Linda K. Silverman (“Upside-Down Brilliance: the visual-spatial learner” – “Brilhantismo de Cabeça para Baixo: o aprendiz visual-espacial), publicados em 2005 pelo The Institute for the Study of Advanced Development, os quais direcionam à educação de superdotados, diferenciando o estilo sequencial do visuoespacial.

O primeiro, regido pelo hemisfério esquerdo do cérebro, é sequencial, analítico e orientado no tempo. O segundo, regido pelo hemisfério direito, percebe o todo, sintetiza e apreende o movimento em espaço. Os métodos de ensino e aprendizagem comumente usados nas escolas aplicam o estilo sequencial. Ainda segundo Silverman (Upside-Down Brilliance: the visual-spatial learner, 2005), os professores não precisam substituir um pelo outro, mas, sim, ao formularem as estratégias de ensino, se conscientizarem sobre o estilo visuoespacial dos seus alunos.

A dominância espacial ou sequencial afeta a forma como percebemos o mundo e os problemas, além da forma como buscamos e escolhemos os caminhos da pesquisa e das soluções. O pensamento espacial é holístico, favorece a sincronia de eventos não relacionados, enquanto o sequencial é temporal, analítico e envolve progressão ordenada do conhecimento, indo do simples ao complexo.

Alunos visuoespaciais, por terem uma organização cerebral diferente dos alunos sequenciaisauditivos, são indivíduos que pensam em imagens e não em palavras. E, por visualizarem o todo, aprendem de uma só vez. Para muitos, este é o efeito “Uau” ou “Eureka”, quando o superdotado visuoespacial que parecia distraído em outras atividades resolve um problema instantaneamente, como se estivesse tendo insights.

Ocorre que o superdotado visuoespacial coleta os dados de diferentes domínios ao longo de anos e está sempre montando um quebracabeça na sua mente. Pensador sistêmico que é, diante de um problema novo, encaixa os componentes informacionais que já formou por meio da ativação de imagens e geração de ideias que combinam elementos díspares de novas maneiras. Ele, porém, não aprende com repetição e exercícios (outra tortura para o superdotado).

Em tempo: “Eureka” é o termo expressado por Arquimedes, estudioso da Antiguidade grega, ao sintetizar em sua mente a teoria da força de empuxo dos fluidos. Muito provavelmente seu estudo se prolongou durante anos e se concretizou no famoso momento da lenda. Uma das funções da escola é preparar os alunos para suas futuras carreiras profissionais. Entretanto, ela ainda exige habilidades sequenciais, tais como: seguir as instruções, entregar o trabalho atribuído dentro do prazo, memorizar fatos, recuperar de forma rápida, mostrar etapas do trabalho, ter escrita limpa, legível (uma tortura para os superdotados) e ortografia precisa, ser pontual (como exigir de quem entra no estado de fluxo ou flow o tempo todo?), além de possuir boa organização e arrumação. Que profissões e que posições profissionais exigem tais habilidades ainda tão valorizadas pela escola?

Convido educadores, pais e a sociedade a adotar uma visão mais ampla e integradora da superdotação, promovendo uma educação que reconheça e valorize a diversidade de habilidades e estilos de aprendizagem

As profissões de hoje e mais ainda as das próximas décadas recompensam (ou deveriam) quem compreende o panorama geral, pensa fora da caixa, assume riscos, tem capacidade de prever tendências, habilidade de localização e resolução de problemas, domínio de informática, sabe ler bem as pessoas, combina os pontos fortes de cada um com os dos outros para construir uma equipe forte, e sabe lidar com a complexidade.

Convido educadores, pais e a sociedade a adotar uma visão mais ampla e integradora da superdotação, promovendo uma educação que reconheça e valorize a diversidade de habilidades e estilos de aprendizagem. Reconhecer e valorizar os diferentes estilos de aprendizagem, como os sequenciais e visuoespaciais, é essencial para criar estratégias educacionais eficazes e inclusivas. O olhar limitado pode levar a conclusões equivocadas, o que ressalta a necessidade de considerar o contexto geral.

Analogamente, a superdotação não pode ser avaliada apenas pelos exemplos mais visíveis e reconhecidos. É crucial entender que os superdotados são uma população neurodivergente diversa, com distintas capacidades de aprendizado que não podem ser padronizadas. Além disso, a aplicação superficial de conceitos, tais como de Espectro, mostra como a delimitação inadequada de um termo pode levar à compreensão restrita e limitada.

A superdotação, assim como o autismo, deve ser vista como espectro com diferentes níveis, tipos e características, reconhecendo a complexidade e a diversidade existentes nesse grupo. A educação deve incorporar diferentes perspectivas teóricas e estar aberta a novas proposições e mudanças, tal qual um jogo de tabuleiro, em que os posicionamentos se adaptam conforme avança o conhecimento.

Lílian Schreiner Módolo é doutora e mestre em Administração pela USP, professora universitária e de pós-graduação, e empresária. Autora do capítulo de livro “A Evolução das Práticas Ambientais nas Organizações no Período de 2007 a 2014” (Editora Poisson, 2021). Foi Researcher Fellow na Universidade de Graz, Áustria.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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