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| Foto: Mandel Ngan/AFP

Aproximadamente um ano e meio atrás, eu me mudava temporariamente de Los Angeles para Nova York, tendo já finalizado o primeiro ano do meu mestrado na Escola de Políticas Públicas da Universidade do Sul da Califórnia e estando já levemente familiarizado com a realidade socioeconômica dos Estados Unidos, principalmente do oeste. Era dada a largada da corrida presidencial norte-americana. As primárias dos partidos Republicano e Democrata estavam recheadas de candidatos. Combinados de políticos de carreira, militares e familiares de políticos formavam um grupo de 12 pré-candidatos.

Naquela altura, já me parecia claro que, dentre todos os presidenciáveis, existiam quatro grandes nomes em meio a tantos aspirantes. Hillary Clinton, por ter uma bagagem política herdada do seu marido e uma carreira construída ao longo do mandato de Obama. Bernie Sanders, por ter um discurso politico ímpar, talvez jamais visto na história recente dos EUA. Jeb Bush, por ser filho de um ex-presidente, irmão de outro, e por ter um comportamento diplomático respeitável no Partido Republicano. E, infelizmente, Donald Trump, por ser alvo de uma cobertura imensa da imprensa, dado seu irrestrito vocabulário. Um estudo recente da Universidade de Harvard inclusive confirmou a escancaradamente desequilibrada cobertura da mídia que favoreceu Trump. Outra prova do trabalho da mídia foi publicada pelo jornal The Atlantic. Ao longo de todo o período de campanha, Trump teve 1,209 milhão de menções na televisão. Hillary Clinton teve 629 mil. Bernie Sanders teve quase 200 mil. E Jeb Bush, menos de 120 mil.

A realidade política dos Estados Unidos, por mais contraditório que pareça, não é necessariamente democrática. Quando A democracia na América foi escrito por Alexis de Tocqueville, o sistema era inovador. Naquela altura, os EUA eram a grande democracia do mundo. Afinal de contas, no século 17 a maioria dos países ainda vivia monarquias e, quando Tocqueville cruzou o Atlântico, ele se impressionou com o sistema eleitoral. O voto representativo rompia com tudo o que já se tinha visto. O problema é que hoje, em meio ao século 21, muito pouco mudou.

Não foi Trump que ganhou. Foram o Partido Democrata e Hillary Clinton que perderam

De lá até aqui, o sistema politico americano se consolida cada vez mais, mas não foram feitos avanços no sistema eleitoral propriamente dito. Os resíduos do sistema de colégio eleitoral como uma aliança de estados; o sistema que dá aos ganhadores dos estados todos os delegados da unidade federativa; o arranjo dos distritos desenhado a cada dez anos pelos próprios parlamentares (processo que ficou apelidado de “gerrymandering”), aumentando a importância das áreas rurais do país e eliminando outsiders; a altíssima abstenção de cerca de 50% dos eleitores; os “superdelegados” no Partido Democrata que têm autonomia sobre os votos populares; e fraudes internas nos partidos, entre outras primitividades do sistema dos anos 1700. A maioria do voto popular foi para Hillary Clinton. Acontece que a democracia norte-americana não é tão democrática assim. Em menos de 20 anos, por duas vezes o povo escolheu X, e deu Y.

Trump agora é o 45.º presidente da história dos EUA. Um zé-ninguém que não sabe o que é educação cívica, diplomacia e respeito, agora ocupa a cadeira de Abraham Lincoln, Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e Franklin Roosevelt. A sua promessa, além de socialmente fragmentadora, ambientalmente ignorante e globalmente repudiada, é de reverter os acordos de livre comércio que, segundo ele, devastaram a economia norte-americana. Com o Brexit e com Trump, o protecionismo vai reinar.

Os dados sempre mostraram que Bernie Sanders, para quem eu voluntariamente trabalhei durante parte do meu período na América do Norte, era o candidato do Partido Democrata que tinha mais força para derrotar Trump. Todas as pesquisas apontavam para isso. Sanders ofereceu alternativas pacificadoras e progressistas para tudo: sistema fiscal, educacional, sistema de saúde, sistema político, políticas de drogas, imigração, infraestrutura, política externa e diplomacia, indústria farmacêutica, corrupção, tudo. Sem nunca atacar adversários, e tendo sempre como pilar básico um dos valores primordiais na sociedade norte americana: a diversidade.

Mas não. A pseudo-centro-esquerda norte-americana, idealizada no Partido Democrata, não queria alguém de fora. Foram tantas estratégias de combate interno que até a presidente do Partido Democrata, Wasserman Schults, renunciou ao cargo no meio da eleição quando informações vazaram. O partido se entregou aos interesses das grandes corporações, que sentiam mais segurança com as políticas de Hillary, capazes de darem mais quatro anos de letargia para a população americana. Ela era a candidata do status quo, da mídia, de Wall Street, dos bancos, das indústrias farmacêuticas e dos planos de saúde. Com Sanders para trás, por incrível que pareça, o caminho para Hillary estreitou.

Os salários médios americanos estão em níveis menores que os dos anos 70. O crescimento econômico se concentra no bolso do 0,1% mais rico do país. Trabalhar 44 horas por semana, em dois empregos, mal possibilita ao americano médio pagar seu aluguel, transporte, alimentação e saúde. Mais de meio milhão de famílias vai à falência todos os anos por dívidas hospitalares. Quem dirá fazer um curso superior. A dívida estudantil dos EUA já é maior que o PIB brasileiro. A própria dívida externa dos EUA já passa de US$ 20 trilhões. Dos últimos 45 anos, 40 foram de déficit. Cada vez mais pessoas são deixadas para trás. A maioria dos norte-americanos está claramente insatisfeita com a realidade socioeconômica do país. Como Hillary representava mais do mesmo, não dava para irem com ela.

Eles foram com Trump. E foram com ele devido a suas promessas de implementar políticas de defesa da classe trabalhadora, proteção da previdência social, melhorias na qualidade das políticas de saúde de Obama, aumento do salário mínimo, combate ao controle financeiro de Wall Street e a fuga fiscal de grandes corporações, e a negação de acordos de livre comércio como o TPP e a Nafta. Eles foram com Trump pois foi ele quem prometeu romper com o que estava posto na mesa.

Trump não apenas ganhou a presidência. O Partido Republicano ganhou também a maioria no Senado e na Câmara de Representantes, e a maioria dos governos estaduais. Depois de acompanhar por um ano e meio a corrida eleitoral norte-americana e ver Trump mudar de opinião dezenas de vezes em seus debates, confesso não saber o que saber. Mas, ao mesmo tempo, eu entendo completamente o povo que votou no Partido Republicano. A bipolarização partidária dos EUA inviabiliza alternativas fora da bolha republicana e democrata. Apesar de Trump ter construído uma candidatura voltada para o trabalhador médio norte-americano, não foi ele que ganhou. Foram o Partido Democrata e Hillary Clinton que perderam. E perderam muito tempo atrás.

Um amigo meu, americano, resumiu bem o resultado em seu perfil no Facebook: “Assustados? Lembrem-se, o fato de não termos apoiado a Hillary não significa que não apoiamos os direitos das mulheres, dos LGBTs, dos negros, muçulmanos, mexicanos, reformas de imigração, desigualdade de renda, e paz. De fato, eu não acredito que vocês vão encontrar pessoas que lutem mais por isso do que nós. E é por isso que nós não apoiamos alguém que nós não acreditávamos que tinha esses ideais. Nada acontece nos EUA sem luta. E nenhuma dessas questões será vencida pelo ódio. O ódio não é forte suficiente para vencer a vontade do povo”.

Germano Johansson, engenheiro civil, é mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela University of Southern California.
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