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Corria o mês de fevereiro de 1932 quando a jovem igreja batista de Piraquara realizou seus primeiros batismos. Seria um dia de festa, não fosse um homem armado entrar na igreja, ameaçando atirar em qualquer um que entrasse no batistério, e a multidão cercando o local aos gritos de “Morram os protestantes”. Por fim, a celebração realizou-se sob proteção policial – provavelmente porque um dos fundadores da igreja era o tenente Antônio Cardona de Aguiar, chefe da junta de alistamento militar da cidade.

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Passaram-se mais de 80 anos e a cordialidade brasileira colocou uma cortina sobre muitos preconceitos – não os aboliu, mas os guardou em lugares mais íntimos. Dia desses estava eu no elevador do prédio onde moro. Parou no meu andar, e a janelinha dava de frente para um versículo exposto na parede do vestíbulo: Hebreus 11,1: “Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos”. Um vizinho balançou a cabeça, em censura. “Coisa de crente”, disse, olhando em volta, em busca de aprovação. Outro vizinho riu, balançando igualmente a cabeça. Sorri para os dois, dei boa noite e saí, para constrangimento de ambos.

Preconceito é preconceito. Podia ser coisa de preto, coisa de judeu. Desta vez, foi coisa de “crente” – uma expressão originalmente pejorativa, porém adotada pela maioria dos protestantes, que, em consonância com o que diz Romanos 1,16, não se envergonham do Evangelho. Para boa parte dos brasileiros, entretanto, ser evangélico é ser pobre, iletrado, manobrável. Burro mesmo.

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Evangélicos, na visão do intolerante, são tacanhos e moralistas

Há razões culturais e históricas por trás desse pensamento. Lembro, por exemplo, da primeira Constituição imperial do Brasil. Por ela, o Brasil tinha uma religião oficial, à qual os monarcas deviam jurar lealdade. Uma ressalva permitia liberdade de culto: “Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo” (conforme o artigo 5.º). Ou seja: você pode até fugir da regra geral, desde que faça isso quietinho e ninguém perceba. Até que a Constituição republicana de 1891 alterasse a regra, igreja evangélica poderia existir, mas sem cara de igreja. Cruz e torre, por exemplo, estavam fora de cogitação.

As razões culturais e históricas, entretanto, não podem servir de desculpa para a manutenção da discriminação religiosa. A discriminação atualmente percorre caminhos diferentes daqueles do passado. Hoje, os mais bem informados sabem que não é possível tachar de iletrados os evangélicos – de fato, como ler a Bíblia é condição essencial para a prática religiosa, os evangélicos são mais letrados que a população brasileira em geral (taxa de analfabetismo de 8,5% na população acima de 5 anos, de acordo com o Censo 2010; a média brasileira é de 10,5%). Pobres, talvez – 61,9% dos evangélicos vivem com menos de um salário mínimo por mês de renda domiciliar per capita, contra 59,3% da população total –, mas não iletrados. A cor também pode importar: 7,5% dos evangélicos são negros, que equivalem exatamente à média brasileira. Pardos são 53,9% dos evangélicos brasileiros, contra 50,9% da população em geral. Mas dizer que a discriminação contra os evangélicos é uma das formas de preconceito contra negros e pobres no Brasil seria uma simplificação ingênua.

Evangélicos não são burros, não saem por aí quebrando imagens de santos, não votam maciçamente no Marco Feliciano ou no Jair Bolsonaro, não pregam a censura a obras de arte. São um povo tremendamente heterogêneo e talentoso. Boa parte dos membros das orquestras do país, por exemplo, é de pessoas que cresceram em igrejas evangélicas, onde a música é parte importante do culto. Organizações sociais criadas e mantidas por igrejas evangélicas (quase sempre operadas por voluntários) são ativas em projetos sociais de todas as áreas, da promoção da saúde à educação, do treinamento para o mercado de trabalho à recuperação de egressos do sistema penitenciário.

Leia também:O papel da religião no debate público (editorial de 9 de setembro de 2014)

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Nossas convicções:  O Estado laico

Hoje a intolerância segue os caminhos dos costumes e da política. Evangélicos, na visão do intolerante, são tacanhos e moralistas, e isso se refletiria na forma como seus parlamentares se comportam. É a mesma “coisa de crente”, só que agora levada, sem embaraço, para redes sociais e páginas de jornais. Para alguns, os evangélicos querem impor sua moral e seus valores a toda a sociedade. E não percebem que eles também não têm direito de impor a sua moral e os seus valores sobre a população evangélica. Que, sendo 21,7% da população brasileira, precisa ter o direito de opinar sobre qualquer questão nacional. E, naturalmente, de eleger representantes alinhados com suas crenças e costumes.

“Mas o Estado é laico”, bradam alguns. Sim, graças a Deus é laico. Ao longo da história, religiões dominantes oprimiram populações e provocaram guerras. Sua relação com os governos era estreita – inclusive no Brasil, onde a já citada Constituição imperial garantia ao monarca o direito de nomear bispos e vetar disposições eclesiásticas –, tanto que foi necessário criar um sistema legal que reduzisse as mútuas influências. Assim, os mesmos fundamentos que mitigam a influência da religião sobre o Estado servem para garantir a liberdade de culto e a livre expressão de valores pessoais e comunitários. O Estado é laico inclusive porque essa é a única forma de defender o direito das minorias religiosas.

Sob um Estado laico, ainda se dizem barbaridades sobre os evangélicos. Se o Estado não fosse laico, sabe-se lá o que fariam.

Franco Iacomini Junior, jornalista, mestre em Teologia e doutorando em Comunicação e Linguagens, é pastor não remunerado na congregação Batista Unidos na Fé, braço da Primeira Igreja Batista de Curitiba em Piraquara.