| Foto: Lucas de Oliveira/Fotos Publicas

Li, recentemente, algumas críticas severas à conduta perversa e abusiva de Woody Allen. Que seja criminalizado, obviamente, se tais denúncias forem comprovadas substancialmente. Mas dizer que a internet tornou-se um mar salgado de ódio é chover no molhado. O ódio tornou-se commodity: na mesa do jantar é servido junto ao arroz, à massa e aos demais itens não perecíveis. Não é necessário parafrasear Stephen Hawking e dizer que a civilização destruirá a si mesma. Mas talvez seja válido dizer que o ódio ficará aqui para contar a história.

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Woody Allen é um dos grandes nomes do cinema. Gênio atemporal. E não está sozinho. Oscilemos em grau de atrocidades: Fernando Pessoa escreveu, pelo heterônimo Álvaro de Campos, “quem diz que a escravidão não foi uma medida de uma sociedade sã?” Ezra Pound era simpatizante do nazismo. Martin Heidegger entra no time. Charles Bukowski, um dos gênios do século, machista e homofóbico. Os Lusíadas, de Camões, é obra de uma disciplina estética e de um rigor métrico dignos de qualquer herói da mitologia grega, mas seu autor é acusado de “colonialista”. Aristóteles considerava a mulher um vão objeto. Ela o é? Evidente que não (embora seja igualmente evidente que alguns ainda pensem que sim). Queimaremos, então, a Poética, seus tratados matemáticos? O destino d’Os Lusíadas será o limbo? Infelizmente, essa pergunta, levada à pauta pelas patrulhas da arte, virou passível de discussão.

As patrulhas atacam tanto pelo flanco da direita quanto pelo da esquerda

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Curioso é que tais patrulhas atacam tanto pelo flanco da direita quanto pelo da esquerda. Assustador é que elas condensam esforços para destruir o que de mais valioso e transcendental temos: a arte. Pois bem: Matem-na. A sangue frio, a golpe seco, implacavelmente. Mas não deixem agonizando, a ela e a nós. Tirem-nos o pouco sentido que ainda temos nesta frágil existência e não mais torturaremos o corpo e a mente como fizeram os grandes e baixos regimes ditatoriais da história, mas, sim, torturaremos o pouco de alma que ainda nos resta. Certa vez, ouvi que “a guerra está deixando de ser política para tornar-se cultural”. A pergunta óbvia: por que precisamos tanto de guerras?

Leia também: Liberdade de expressão e arte (artigo de Rodrigo Ribeiro, publicado em 29 de outubro de 2017)

Leia também: É uma caça às bruxas, sim; eu sou a bruxa e vou caçá-lo (artigo de Lindy West, publicado em 19 de outubro de 2017)

A receita é de bolo: separe-se o artista da obra. O artista, homem de carne no seu tempo, passível sempre de condenação – sempre. A obra, ente de concreto e de eterno, passível de crítica. Ou então nos renderemos à arte moderna e sua cacofonia lírico-amorosa “amar amar-te a Marte amor saudade do amor da dor do amor”. Nada contra o amor; ele é a única barbárie capaz de civilizar o homem. Tudo contra sua banalização. Que ironia machadiana: a arte é destruída com um único instrumento, o ódio. E também é construída com um único artefato, o amor. Há exceções, sempre há. Mas precisamos tanto de binarismos? Iconoclastia aos escultores do pensamento moderno?

Não, não matem os mortos. Olho por olho e acabaremos cegos, diz o ditado. E lá no fim estarão os cegos e os poetas a verem nossa escuridão. Depois do nosso fim, o ódio apagará a luz e fechará as cortinas. Para então renascer no terceiro dia.

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Guilherme Bacchin é escritor, poeta e estudante de Letras.