O ajuste fiscal está em curso, não há dúvidas. O caminho escolhido pelo atual governo federal é o de aumento de receitas, seja pelo aumento de tributos, seja pela revisão de benefícios fiscais. O instrumento eleito pelo Ministério da Fazenda foram as Medidas Provisórias, causando atrito constante com o parlamento e fustigando princípios democráticos que sustentam a tributação brasileira.
A última delas foi a MP 1202/2023, editada em 29 de dezembro, a qual, de uma só vez, afrontou decisões legítimas do Congresso Nacional e colocou em xeque a efetividade de decisões judiciais emitidas pelo Poder Judiciário. O referido ato legislativo unilateral emitido pela Presidência da República no último dia útil do ano de 2023, sem, portanto, qualquer amplo espaço de publicidade, debate, ou contraditório democrático, aborda três revisões de regimes tributários de há muito vigentes.
O primeiro deles diz respeito à sanha arrecadatória da União em torno da dita desoneração da folha de pagamentos, iniciada em 2011 e ampliada nos anos seguintes nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer. Por essa medida, alguns setores da economia (especialmente aqueles com alto índice de empregabilidade e baixo nível de receitas ou com receitas diferidas ao longo do tempo) passaram a recolher suas contribuições previdenciárias com base em sua receita bruta mensal, não mais por meio da folha de pagamentos; inicialmente de forma obrigatória, posteriormente de forma opcional.
Qualquer aumento de carga tributária não pode ser feito de forma surpresa, sem que o parlamento e os setores que representa seja ouvidos.
O prazo final de vigência da “desoneração da folha” era 31 de dezembro. O Congresso, então, aprovou o PL 334/2023 que prorrogava o prazo desse regime de tributação previdenciária para mais quatro anos; o que foi vetado pelo presidente da República. Na sequência, em 27 de dezembro, o Congresso derrubou o veto feito e publicou, no dia seguinte, a Lei 14.784/2023 confirmando a prorrogação pretendida.
No entanto, um dia após a publicação da derrubada de seus vetos pelo Congresso, a Presidência da República fez baixar uma MP que, na prática, torna sem efeito a vontade do Legislativo, retirando do regime de desoneração boa parte dos setores contemplados, incluindo-os na sistemática de pagamento sobre a folha de pagamentos, com alíquotas reduzidas que vão sendo aumentadas ao longo dos anos.
Tal medida é uma afronta à harmonia entre os Poderes e ao pacto federativo, bem como à própria segurança jurídica dos contribuintes, que se vêem em meio a um embate legislativo entre Executivo e Legislativo sem poder se planejar de forma satisfatória para o ano de 2024.
Não bastasse isso, o Poder Executivo buscou fustigar o Legislativo na mesma Medida Provisória 1202/2023, agora revogando benefício fiscal concedido pelo setor de eventos pela Lei 14.148/2021, por meio de vontade do Congresso Nacional ao derrubar veto da própria Presidência da República feito à época. Essas isenções fazem parte do conhecido Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), intentado para possibilitar a recuperação do setor de turismo, então gravemente afetado pela consequências das restrições impostas pelas políticas de contenção da pandemia de Covid-19. Dentre as medidas, estão a isenção de tributos sobre a receita (PIS/COFINS) e sobre a renda (IRPJ/CSLL) de hotéis, agências de turismo, e outras empresas ligadas ao setor.
O atual governo pretende rever essas isenções de forma parcial já para 2024 e total para o ano de 2025, por meio da MP 1202/2023. Tal ato é um atentado à segurança jurídica e à confiança legítima dos contribuintes desse setor, que confiaram nos prazos da legislação então vigente, que foram confirmados pela Receita Federal do Brasil de forma oficial em diversas Soluções de Consulta emitidas sobre o tema, para realizar seu planejamento empresarial para os anos seguintes, o qual, agora, se vê ameaçado.
Por fim, não foi só o Legislativo que foi merecedor de fustigadas por parte do Executivo na referida MP 1202/2023. O Judiciário também teve sua autoridade desafiada. Isso porque a referida medida pretende limitar os efeitos de decisões judiciais transitadas em julgado que reconheceram, sem qualquer limitação de uso, créditos tributários aos contribuintes contra a União Federal, os quais podem ser utilizados para compensações com débitos fiscais próprios vencidos ou vincendos.
De forma sub-reptícia, o Ministério da Fazenda pretende avocar para si o poder de limitar os efeitos dessas decisões judiciais, apontando limites para que contribuintes com créditos reconhecidos judicialmente em valores acima de R$ 10 milhões possam utilizá-los para pagarem seus débitos com o governo federal. Ou seja, o contribuinte efetuou o recolhimento imediato de um tributo que o Judiciário reconheceu como sendo indevido e, agora, o Executivo pretende se furtar de cumprir uma ordem judicial, impondo limites para que as empresas recebam de volta aquilo que pagaram indevidamente.
Em resumo, a Medida Provisória 1202/2023 é um ato autoritário não só porque foi emitida ao apagar das luzes do ano de 2023 (como foi muito comum em décadas passadas não tão democráticas), mas, principalmente, porque afronta decisões legítimas tomadas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário por meio de ato legal que prescinde de debate democrático com a sociedade.
É legítima a intenção do governo federal atual pretender fazer um ajuste fiscal por meio de incremento de receitas, tendo como um dos vieses a revisão de benefícios fiscais e de regimes tributários já consolidados. Contudo o ajuste fiscal não pode fazer vistas grossas ao processo democrático. Qualquer aumento de carga tributária, ainda mais quando decorre de benefícios fiscais já consolidados em meio aos setores econômicos, não pode ser feito de forma surpresa, sem que o parlamento e os setores que representa seja ouvidos.
Afinal, a legitimidade das medidas tributárias repousa, necessariamente, no crivo da legalidade democrática, que só é obtido após o Poder Legislativo referendar as medidas que implicam aumento de arrecadação. Isso porque é inerente à República que os representantes dos setores produtivos envolvidos possam se manifestar, apresentando seus argumentos no bojo do contraditório democrático, sob pena do ajuste fiscal se tornar medida autoritária para satisfazer uma sanha arrecadatória do governante de turno.
Carlos Eduardo Makoul Gasperin é advogado.
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