Mais uma vez nos deparamos com a discussão em torno do Código de Trânsito Brasileiro – desta vez, motivada pelo presidente Jair Bolsonaro, que há alguns dias disparou a ideia de modificar de 20 para 40 pontos o total necessário para que se perca a licença em dirigir, e tenha de passar pela reciclagem do Detran de seu estado. A pergunta inicial que permeia a todos, em um primeiro momento, é: isso seria benéfico ou não? É complicado tomar partido de ser contra ou a favor, pelos motivos que descrevo agora.
Vamos lá. Poderia me posicionar contra a atitude presidencial. Como especialista em trânsito e anos atuando em áreas correlatas, posso afirmar que qualquer que seja o “afrouxamento” na lei, a possibilidade de aumentar os acidentes será iminente. Vivemos em um país onde a cultura do trânsito é completamente obscura, pois muitos aparentam encará-lo como uma competição – ou nunca presenciaram alguém praguejando diante de uma ultrapassagem? Ou seja, diante da irresponsabilidade de muitos motoristas, qualquer redução da rigidez nessas leis pode ser um problema para a sociedade como um todo.
Suspendemos o direito de dirigir para quem comete infrações como estacionamento irregular e farol apagado em rodovia
Porém, há um outro ponto de vista que me faz entender, em partes, a vontade do presidente. Como assim? Temos um problema, ao meu ver, gritante no nosso Código de Trânsito, que pode levar a entender a elevação de pontos como uma solução. Hoje, nosso sistema de pontos é dividido em níveis que chegam até as infrações gravíssimas. Porém, há instaurado em nosso país uma indústria da multa que, sob pressão, eleva algumas infrações de nível – o que pode acarretar o seguinte tipo de problema: o indivíduo que parou irregular em uma vaga recebe 5 pontos por isso; caso esse circule em uma rodovia com farol apagado, mesmo durante o dia, mais 4 pontos. São infrações que devem sim receber multa, porém, se esse erro for cometido duas vezes, perde-se o direito de dirigir temporariamente.
Agora, analisemos outro caso: se o indivíduo é pego por excesso de velocidade, ele pode perder de quatro a sete pontos na carteira, ou mesmo perder ela de vez, caso a velocidade aferida seja superior a 50% do limite da via. Porém, de modo geral, se o condutor comete três vezes essa infração, perderá seus direitos. Notaram o que acontece? Suspendemos o direito de dirigir para quem comete infrações como estacionamento irregular e farol apagado em rodovia, que não colocam vidas em risco como o excesso de velocidade.
Do mesmo autor: Radar: um mal necessário (publicado em 9 de maio de 2019)
Leia também: O governo Bolsonaro e a mobilidade urbana (artigo de Roberta Marchesi, publicado em 12 de janeiro de 2019)
Quero ressaltar que não estou aqui defendendo o fim da multa a farol apagado em rodovias ou mesmo estacionamento irregular – estou aqui defendendo que temos pesos muito próximos a infrações com níveis de gravidade muito distantes um do outro, isso pelo fato de termos, sim, no país, uma indústria da multa instaurada. Por que afirmo isso? Será que uma infração de andar com farol apagado não educaria mais se, em uma primeira ocorrência do indivíduo, ele recebesse um aviso de infração? Será que antes de uma lei nova, caso dessa que acabo de mencionar, não devesse ter uma campanha educativa para mostrar a importância de se andar com farol aceso em rodovia? O objetivo é educar ou arrecadar? Os dois não podem andar de mãos dadas.
Com isso, acredito que a ideia do presidente tenha fundamento. Porém, o conselho que deixo, se é que posso: a solução para o problema não está em mudar a pontuação, mas em encarar o Código de Trânsito e as multas de infração como educativas. Enquanto a encararmos como instrumento arrecadador, medidas como a de Bolsonaro terão sua lógica de ser.
Glavio Leal Paura, especialista em trânsito e mobilidade urbana, é professor dos cursos de Engenharia da Universidade Positivo.
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