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Segundo dados oficiais, o Brasil foi o segundo país que mais prendeu nos últimos 15 anos. De 1995 a 2010, a população carcerária brasileira subiu 136%; a quarta maior população prisional do planeta, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Mesmo com o aumento vertiginoso de presidiários, o número de homicídios só cresceu: hoje, chega a 60 mil por ano. Em 2013 foram gastos R$ 4,9 bilhões nos presídios e unidades socioeducativas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Somente esses dados mostram a falência, a inoperância e a inutilidade do sistema brasileiro de segurança pública, ou dos sistemas de ressocialização, visto que mais de 60% dos presos são reincidentes no crime. A crise no sistema prisional, como no Maranhão, em Pernambuco e também no Paraná, serve para mostrar o caótico despreparo da Justiça e dos governos.

E agora querem reduzir a maioridade penal, tornando imputáveis os adolescentes menores de 18 e maiores de 16 anos, alterando o artigo 221 da Constituição Federal. O projeto (PEC 171/1993) passou na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, mas ainda precisa passar pelo Plenário da Câmara, ter dois terços dos votos em duas votações, e também pelo Senado Federal. Tudo indica que esse tema será decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda temos um longo caminho.

Em reportagem no dia 14 de outubro de 2014, a Gazeta do Povo já dava os números que vão na contramão de quem defende a redução da maioridade penal: “1 em cada 10 homicídios em Curitiba é cometido por adolescente. Entre 2012 e 2014, 8,7% do total de homicídios foram cometidos por menores de idade na capital paranaense. Em todo o país esse porcentual foi de 3%”. A promotora da Vara do Adolescente em Conflito com a Lei, citada na mesma reportagem, diz que a desinformação faz uma parte da população levantar essa bandeira: “O adolescente apreendido por homicídio sofre restrição de liberdade provisória. Depois, é internado e só sai antes de três anos se uma equipe técnica julgar que ele tem condições para isso. O adulto homicida sem antecedentes e com bom comportamento ganha liberdade em um ano”.

O proclamado aumento da violência juvenil se torna um lugar-comum tranquilizador por meio do qual a violência, enquanto atribuída a uma geração, é relegada a um mundo que nos é estranho

O filme O peso da água, de Kathryn Bigelow, tem como tema a reconstrução de um homicídio cruel do fim do século 19. O filme ilustra como, somente mudando o ângulo de visão, é possível compreender acontecimentos diversamente inexplicáveis. Na trama, duas mulheres são misteriosamente assassinadas e encontradas em casa; o suspeito é um desconhecido que passava pelo local, e que foi condenado à morte, para alívio de toda a comunidade. A única sobrevivente da casa, Maren, foi encontrada em estado de choque, como se tivesse assistido a um acontecimento violento demais para poder ser conservado na mente e elaborado.

Um século depois, uma jornalista encarregada de realizar uma pesquisa sobre o homicídio vai ao lugar do delito e reconstrói a trágica morte das duas mulheres de modo completamente diferente do que oficialmente passou para a história: numa fria noite de inverno, Maren, tímida e introvertida, encontra-se em casa, sozinha com a amiga Anethe, que lhe pede para dormir na sua cama, onde se aqueceria mais. Contudo, na manhã seguinte, a irmã de Anethe descobre as duas, na mesma cama e abraçadas, e as acusa de depravação. Ser surpreendida ao demonstrar um afeto escondido, proibido e culpável faz nascer em Maren uma inquietante lembrança infantil marcada pelo mesmo sentimento de culpa. A sua reação foi imediata e terrível pela gravidade do impulso violento: depois de ter matado Anethe e a irmã, Maren entra novamente no seu estado anterior de introversão e de timidez. A hipótese de Maren não foi nem sequer levada em consideração, e para levar a culpa aparece um desconhecido que estava de passagem.

No filme se entrelaçam muitos temas para se entender a PEC 171/1993: a necessidade de colocar bem longe de nós e de nossa sociedade um demônio capaz de praticar atos tão impensavelmente violentos; a necessidade de empatia para compreender a natureza de certos atos; o impulso violento que aparece depois de uma ferida narcisista aparentemente muito tênue. Um adolescente definiu esse estado como o “saltitar de um grilinho na cabeça”, que entra em ação no momento em que há uma ofensa que, embora banal, aparece imediatamente como intolerável. O tema do adolescente infrator não pode ser resolvido apenas pelo viés jurídico ou da repressão, ou em momentos extremos de sentimento de insegurança que vivemos.

Com frequência, afirma-se que está se intensificando o comportamento violento dos adolescentes em nosso país. É preciso dizer, de início, que a violência atinge nossa sociedade em todas as instâncias; há um mal-estar na civilização. Quando algum episódio de violência juvenil chega aos jornais, é como se passasse através de uma lente de aumento, que o torna um sinal alarmante da degeneração da sociedade. Na onda emotiva de um fato denunciado nos meios de comunicação faz-se um juízo sumário sobre a degradação moral de uma sociedade. O proclamado aumento da violência juvenil se torna, assim, um lugar-comum tranquilizador por meio do qual a violência, enquanto atribuída a uma geração, é relegada a um mundo que nos é estranho.

Deve-se afastar a ideia de que existe um perfil psicológico único e específico do adolescente infrator. Esses adolescentes devem ser atendidos em suas necessidades específicas na área da saúde, educacional, psicológica, pois sem esses cuidados têm uma grande chance, mesmo com a redução da maioridade penal, de se tornarem uma população adulta problemática, gerando sérios prejuízos para si mesmos, para as famílias e para a sociedade. Em nenhuma faixa etária, a não ser a adolescência, o crime cometido tende a ser generalizado e atribuído à condição de adolescente, que se torna uma espécie de réu coletivo, muito mais facilmente do que acontece com crimes igualmente graves cometidos em outras faixas etárias. A infração juvenil se torna o receptáculo das angústias dos adultos, em prejuízo do esforço de compreender as vicissitudes individuais de cada adolescente e da situação social em que estamos inseridos.

Paulo de Lima é filósofo, professor e mestrando em Educação na UFPR.
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