Por ser um importante produtor de alimentos e commodities, o Brasil desperta a ira de setores econômicos em países concorrentes. Por isso, temos visto tentativas de erguer barreiras comerciais a mercadorias brasileiras usando como argumento o desrespeito aos direitos humanos ou agressões ao meio ambiente. Um instrumento que contribuiu para evitar que essas barreiras fossem implementadas, a “lista suja” do trabalho escravo, está sendo alvo, agora, de um ataque que pode colocar em risco tanto a credibilidade de nossos produtos quanto a da própria capacidade do país em combater esse crime.
O cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo, conhecida como “lista suja”, é uma base de dados mantida pelo Ministério do Trabalho que demonstra os casos em que o poder público caracterizou o crime através de resgates de pessoas, e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias.
Transparência é fundamental para que o capitalismo funcione a contento. Se uma empresa esconde passivos sociais e ambientais, sonega informação relevante que deveria ser ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial.
Mas essa vantagem concorrencial está em risco. No dia 16, o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, atendeu a um antigo pedido da bancada ruralista no Congresso Nacional e trouxe uma nova interpretação ao conceito de trabalho escravo por meio de portaria publicada no Diário Oficial da União.
Como provar a um importador que nossos produtos não contam com escravos em sua fabricação?
Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dada a intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
A nova portaria estabelece o cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de “condições degradantes” e de “jornada exaustiva”, ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo essa lei, qualquer um dos quatro elementos separadamente é suficiente para caracterizar a exploração. Dessa forma, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passam a ser acessórias para determinar o que é trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais e a concessão de seguro-desemprego aos resgatados.
O Poder Executivo, com uma portaria, acabou alterando o sentido do artigo que está no Código Penal. Ou seja, agiu como Poder Legislativo. Vale lembrar que pelo menos três projetos propostos pela bancada ruralista tramitam na Câmara e no Senado a fim de eliminar “condições degradantes” e “jornada exaustiva” dos elementos que caracterizam escravidão.
Além disso, a mudança é inconstitucional. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, criticou a portaria em audiência com o ministro do Trabalho. Segundo ela, “ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a portaria fere a Constituição”. Beate Andrees, chefe do Departamento de Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho, na sede da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra, lamentou a situação. “O Brasil estava em linha com nossas definições, até hoje. Era um modelo e uma liderança”, afirmou ao jornal O Estado de S.Paulo.
Leia também: O fim do trabalho escravo no Brasil (artigo de Gláucio Araújo de Oliveira, publicado em 29 de dezembro de 2014)
Em abril de 2016, as Nações Unidas defenderam a manutenção do atual conceito de trabalho escravo no vigente no Brasil. “Em 2003, o país atualizou sua legislação criminal, introduzindo um conceito moderno de trabalho escravo, alinhado com as manifestações contemporâneas do problema, que envolve não só a restrição de liberdade e a servidão por dívidas, mas também outras violações da dignidade da pessoa humana”, afirmou o documento divulgado pela ONU.
Os críticos ao conceito previsto no artigo 149 do Código Penal afirmam é difícil caracterizar “condições degradantes” e “jornada exaustiva”, o que geraria insegurança jurídica. Mas há instruções e enunciados produzidos pelo Ministério do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho, além de jurisprudência e decisões do próprio Supremo Tribunal Federal. Ironicamente, uma tentativa de incluir a explicação desses dois elementos em lei, sugerida em relatório pelo senador Paulo Paim (PT-RS), foi abortada pela bancada ruralista.
Há políticos que reclamam que fiscais do Trabalho consideram como escravidão a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis. A frágil argumentação é desmontada pela análise dos conjuntos dos autos de infração. Qualquer fiscalização é obrigada a aplicar multas por todos os problemas encontrados, dos pequenos aos grandes. Mas trabalho escravo é fruto do conjunto das graves infrações.
Além disso, a nova portaria condiciona a inclusão de nomes à “lista suja” do trabalho escravo a uma determinação do próprio ministro. Ou seja, a divulgação pode deixar de ter um caráter técnico e passar a contar com uma decisão política.
Do mesmo autor: A batalha pela dignidade está longe do fim (14 de junho de 2014)
A portaria foi divulgada menos de uma semana após a exoneração do coordenador nacional de fiscalização do trabalho escravo do próprio ministério, André Roston. Sua dispensa causou polêmica porque, da mesma forma que a publicação da portaria, ocorre em meio às negociações com o Congresso para que não seja admitida a segunda denúncia da PGR contra Michel Temer.
O sistema de combate ao trabalho escravo evoluiu bastante desde sua criação, em 1995. Resgates tornarem-se rotineiros, acordos com o Ministério Público do Trabalho e condenações pela Justiça do Trabalho também. Ações de empresas de capital aberto inseridas na “lista suja” passaram a sofrer perdas na Bolsa de Valores de São Paulo. Contudo, ainda falta, e muito, avançar com a punição criminal – não pela falta de processos, mas pela dificuldade de condenar em última instância empresários ricos por um crime que lesa trabalhadores pobres no Brasil. E, é claro, falta garantir melhora na qualidade de vida em locais de alto índice de tráfico de seres humanos.
Mas também temos de manter vivo o que já construímos até aqui. Como provar a um importador inglês, holandês ou norte-americano que a carne, a soja, o algodão, o ferro-gusa, entre outras mercadorias brasileiras, não contam com escravos em sua fabricação se o país resolveu desmontar um sistema visto como exitoso no combate a esse crime? Até este momento, nós tínhamos como fazer isso. A partir de agora, ficará a dúvida.
Quem vai pagar pelo prejuízo dos empresários que operam dentro da lei e são passados para trás por quem se vale de concorrência desleal e atua para destruir instrumentos que separam os dois?
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